Autora: Iara Nancy Araújo Rios
CAPÍTULO III
Família e Casamento
Os estudos iniciais relacionados à mulher surgiram por volta do século XVIII, com a investigação do corpo num contexto médico científico, preocupado em classificar casos de patologia física e psíquica com a finalidade de normalização das condutas tidas consideradas anormais e desviantes, dando origem a uma ciência que precisava conhecer o corpo, para poder controlá-lo melhor no campo da saúde pública.
Até o século XVIII, para a medicina científica havia apenas um sexo: o macho, considerado a perfeição da espécie humana. A filosofia neoaristotélica reforçava essa idéia, argumentando que a mulher era um homem imperfeito por possuir menos ‘calor vital’. Adiferença entre os sexos, e a conseqüente inferioridade feminina era justificada por ser uma necessidade da natureza, pois se a mulher tivesse o mesmo calor que o homem não poderia gerar filhos, mas iria cozinhá-los no seu calor. Este modelo do sexo único prevaleceu até a metade do século XIX. Mesmos os ideais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” proclamados pela Revolução Francesa em 1789 não abalaram as desigualdades sociais entre os sexos, uma vez que o fundamento das desigualdades era explicado pela própria natureza.
O Evolucionismo reforçou a inferioridade feminina e a situação do homem, principalmente o branco, como superior através do embasamento cientifico. Até nas doenças, as causas eram definidas de forma diferenciada de acordo com o sexo do doente. A tuberculose, por exemplo, ao homem eram atribuídas causas ambientais e para a mulher era considerado o mau funcionamento dos órgãos reprodutores. As doenças femininas eram explicadas como se fossem originadas nos ovários: desde a irritabilidade até a loucura.
A partir de 1808 o tratamento das doenças em mulheres começou a ser desempenhado com mais ênfase, devido ao fato dos maridos ricos ou enriquecidos desejarem tratar as suas esposas. Magali Engel ressalta que
O organismo da mulher é definido como fisiologicamente mais propenso à perversão sexual do que o masculino, pois, ao dotá-lo de um forte instintode procriação, a própria natureza havia gerado o caráter ambíguo da sexualidade feminina. A mulher, pelas suas próprias características fisiológicas, disporia apenas de duas únicas alternativas para a realização de seus instintos sexuais: como esposa/mãe (sexualidade sadia) ou como prostituta (sexualidade doente).
A família era considerado o espaço da sexualidade saudável, e a prostituição não era associada diretamente a miséria, mas a preguiça e a ambição. A prática de relações sexuais fora do casamento era, geralmente, considerada fornicação, havendo punições que poderiam variar entre o pagamento de multa até o espancamento público.
No Brasil escravista registra-se a ‘prostituição clandestina’, que segundo Magali Engel “realizada de forma sutil, escamoteada sob a capa da inocência e do recato”, era geralmente atribuída às escravas e às concubinas - mas não só a elas – cabendo ao Senhor, com o poder que lhe é instituído no referido regime, encontrar meios de contenção e controle do negro naturalmente depravado. Magali Engel argumenta que "as prostitutas clandestinas são concebidas como aquelas que exercem ocultamente a prostituição sob a capa de atividades tais como costureira, florista, parteira, lavadeira, enfermeira, pintora etc."
Os estudos de cunho marxistas enfocaram a mulher enquanto sujeito parte de uma determinada classe, porém foram os revisionistas do marxismo na década de 1960 que começaram a desenvolver estudos relacionados a grupos, massas, povo, minorias, entre elas, as mulheres.
O gênero, porém, enquanto categoria de análise foi abordado apenas na década de 1970, a partir de questionamentos que já vinham causando uma “reviravolta” na pesquisa histórica. Novas temáticas e novos objetos surgiram com os estudos voltados para a análise de segmentos sociais até então deixados a margem pela Historiografia.
Neste sentido, a História Cultural se dedica às questões das identidades coletivas, permitindo uma pluralidade dos objetos de investigação na historia, e “nesse bojo, as mulheres são alçadas a condição de objeto e sujeito da história”. O cotidiano, a família, amaternidade, a sexualidade, os sentimentos, entre outros, foram temas ampliados pela Históriadas Mentalidades, trazendo a tona a relação entre os sexos como um dos motores da História. Além das correntes historiográficas, o movimento feminista, desencadeado a partir dosanos 60, foi segundo Joan Scott, uma das molas propulsoras de mudanças das condições sociais das mulheres.
A historiografia, porém, não trata de maneira uniforme as questões da mulher e os estudos de gênero. De um lado, existem estudiosos como Rachel Soihet, Joana Maria Pedro e Joan Kelly, entre outras, que tratam das relações de gênero como uma construção social que vão se moldando de acordo com os papéis desempenhados entre o ser homem e o ser mulher; de outro lado, a outros estudiosos que desconsideram a categoria gênero - a exemplo, Mary Del Priore - enfatizam que esta noção “não dá conta de alguns problemas que surgiram na historiografia brasileira mais recente”, e argumenta que o que existe é uma distinção entrea História das Mulheres e a História Social das Mulheres. A História das Mulheres caberia estudar as representações dos papéis /funções femininas presentes, por exemplo, na iconografia e no discurso. Enquanto a História Social das Mulheres deveria se concentrar na relação entre a mulher e a sociedade na qual ela está inserida, abrangendo a família e aeconomia.
Este trabalho não busca findar tais discussões historiográficas, porém se dispõe a estudar as relações de poder permeadas pelos enlaces matrimoniais realizados pela Igreja Matriz da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité, entre 1856 e 1866.
Pensar o papel da mulher, suas especificidades, transformações e contribuições émuito importante e necessário para se desconstruir o estudo tradicional, que enfoca apenas omasculino, ainda predominante na historiografia. Acredito que as relações desempenhadas entre os sexos sejam uma contribuição mais valiosa para o meu trabalho, visto que no sertão baiano dos Tocós os agentes sociais – homens e mulheres – estão silenciados, carecendo de estudos que focalizem os comportamentos das pessoas que estão num determinado momento vivendo, sofrendo, amando, lutando num mesmo espaço: o espaço da vida em sociedade.
3.1 Arranjos e disputas no século XIX.
O estudo do casamento está geralmente associado a formação de núcleos familiares, abrangendo diversos aspectos dessas relações, como a sexualidade, a criança, a mulher, educação, amor, cotidiano, etc., sendo consolidados na década de 1980 com a abrangência de temas, métodos e focos de atenção impulsionada pela História Social. Todavia, alguns estudos existentes sobre a Bahia tratam, em geral, dos casos da eliteda capital baiana e do recôncavo açucareiro, ou das possibilidades dos escravos construírem laços familiares do outro, reproduzindo através da historiografia a dicotomia senhor X escravo, como se estivessem em mundo separados. Chamo a atenção para a necessidade de análises que identifiquem outros agentes presentes na prática do casar do século XIX, e que reconheçam famílias originárias das relações múltiplas concebidas na sociedade baiana, como a possibilidade de mulheres livres se casarem com escravos.
A liturgia matrimonial, estabelecida por volta do século XIV, oficializava e sacramentava a união dos casais, que deveria se constituir como base da formação familiar, visando a procriação. Vainfas destaca que “em nome da procriação toleraram o desejo,vigiaram o prazer. Salvou-se a cópula: sacramentada, ritualizada e racionalizada para a propagação da espécie”.
As relações estabelecidas pela sociedade patriarcal permitiam que o domínio de terras e pessoas não se limitasse ao domínio de terras e pessoas exploradas pelos proprietários, uma vez que não eram apenas as pessoas que estavam diretamente subordinadas ao proprietário que lhe obedecia, mas também outras pessoas que eram convencidas de tomar decisões a partir da influência da criação de vínculos que extrapolavam a esfera econômica e consolidavam poderes e papéis sociais.
O apadrinhamento e o casamento eram elementos primordiais na conformação de grupos sociais. Estes ritos católicos eram considerados sagrados e consolidavam laços sociais, unindo, muitas vezes, senhores e outros dependentes, até escravos, servindo enquanto instrumento de poder e de autoridade.
Mesmo com o estudo da família tendo sido consolidado apenas nos anos 80, Gilberto Freyre na década de 1930 esboçou o perfil das sociedades patriarcal brasileira. Casa Grande e Senzala, por muitas vezes, foi discutido como uma explicação da formação/legitimação da sociedade patriarcal brasileira, através da família patriarcal, ligando-a a colonização portuguesa e enfatizando as contribuições negra/africana e indígena nesta formação. Gilberto Freyre faz uma epopéia saudosista à família e a vida nos engenhos, descrevendo as relações amenas entre senhores e escravos, a constante alegria dos escravos e as delícias da cozinha tradicional.
A tese defendida por Freyre, é fundamentada na existência de uma democracia racial, onde senhores e escravos conviviam harmonicamente devido à plasticidade dos primeiros e as características dionisíacas e a pré-disposição sexual dos segundos. Freyre argumenta que a miscigenação “corrigiu a distância social (...) entre a Casa Grande e a Senzala”.
Muito mais do que a escassez de mulheres brancas entre os conquistadores, a família brasileira seria profundamente marcada pela confraternização sexual, aparecendo enquanto um elemento determinante no apaziguamento dos contrastes sociais, como argumenta o autor: “e é justamente por esta confraternização sexual, que possíveis muros econômicos e políticos entre as raças foram derrubados”.
A família e, conseqüentemente, a sociedade patriarcal, síntese da configuração das influências de portugueses, indígenas e africanos, reproduziria a individualidade cultural centralizada na Casa Grande, a fundadora da brasilidade.
De início, o português “cosmopolita e plástico” tinha uma herança de contatos comoutros povos (mouros, africanos e asiáticos), o que lhe reservara “aptidão” e “flexibilidade”. Por outro lado, a índia ameríndia apresentava-se sempre disposta ao coito,“as mulheres eramas primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses”. A presença das negras escravas viria estimular ainda mais, principalmente por serem dotadas de conhecimentos afrodisíacos e feitiços sexuais e tambémas responsáveis pela iniciação sexual dos filhos dos senhores, sem contar com o clima que proporcionava uma “superexcitação sexual”.
A família rural patriarcal seria a célula da sociedade brasileira por reunir “sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociaise econômicas”, sendo que o senhor de engenho dispunha de uma “dominação” quase ilimitada, pois era "dono das terras, dos homens e das mulheres".
A abordagem de Freyre a respeito da família patriarcal aparece mais clara com a notanº 55, onde esclarece que
parece-nos inegável a importância da família patriarcal ou para patriarcal como unidade colonizadora no Brasil. É certo que o fato dessa importância antes qualitativa que quantitativa, não exclui o fato, igualmente importante, de entre grande parte da população do Brasil patriarcal 'a escravidão, a instabilidade e seguranças econômicas' terem dificultado a 'constituição da família na sua expressão integral, em bases soltas e estáveis.
Apesar de Freyre não distinguir a família patriarcal de para patriarcal, encontramos o conceito de família em Freyre:
A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado, nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que sedes dobra em polícia, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosada América. (grifos nossos)
Ao estipular força e poder à família, Freyre confere-lhe, também domínio, implicitamente ligado à dominação no sentido de obter obediência que pode ser reproduzido nos mais diversos comportamentos, até sexuais.
Dante Moreira Leite ressalta a aproximação conceitual entre o poder patriarcal de Gilberto Freyre e o poder patrimonialista de Max Weber, e especifica que Weber trabalhacom tipos ideais – recurso construído teoricamente utilizado para aproximar um fenômeno do conceito elaborado. O autor demonstra que “as descrições de Gilberto Freyre se aproxima desses modelos [e] se levarmos em conta essa distância entre o tipo e o caso concreto, a adequação é extraordinária”.
Gilberto Freyre nega as explicações calcadas exclusivamente na economia, ele percebe as inter-relações em todas as ordens institucionais, seja religiosa, militar, política e jurídica, que constituem a estrutura social além de explicar a sociedade brasileira pela análisesócio-cultural da miscigenação, envolve também as relações familiares e os hábitos da vidacotidiana, o que possibilitou a convivência harmônica entre as raças.
As várias lacunas deixadas por Freyre foram e ainda são debatidas e complementadas, porém chamo atenção para o mesmo clima “ameno” e sem conflitos nos dois universos: tantona casa grande e na senzala de Freyre, quanto na Freguesia de Nossa Senhora da Conceiçãodo Coité, porém, esta última sem escravos.
Todavia, os registros eclesiásticos de batismo e casamento da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité evidenciam que estes laços familiares restringiam os espaços de contestação dos poderes territoriais, tornando a família um importante elemento de legitimação da dominação social local.
Segundo Eni de Mesquita Samara foi o avanço da História Social que permitiu o aumento das pesquisas voltadas para a condição feminina, criança, ilegitimidade, casamento, concubinato e transmissão de fortunas, permitindo a aproximação com outras áreas evidenciando outros elementos como diferentes formas de união e processos de herança.
Além disso, a formação de famílias negras, inclusive a possibilidade de famílias escravas começaram a ser levantadas, conduzindo a necessidade de se repensar da questão escrava no Brasil, e principalmente em outras regiões da Bahia.
As relações matrimoniais ocorridas na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité possibilitam identificar como a constituição de algumas famílias era elemento de status e poder, através dos quais a dominação era mantida entre os membros de um mesmo grupo.
Entre 1856 e 1866 foram realizados 194 casamentos, porém alguns anos demonstram lacunas nos livros de registros, talvez tenha sido pelas condições do Vigário local, porque a partir de 1861 o Pe. Lefordo Gonsalvez da Costa e Almeida assumiu as atividades no lugar do Pe. Manoel dos Santos Vieira, porém não foram encontrados relatos do que aconteceu. Nos anos 1858 e 1859 foi realizado apenas um casamento por ano, e em 1860 nenhum casamento aconteceu, como demonstra a tabela seguinte:
Os casamentos realizados na Freguesia do Coité neste período apresentam destaque para as famílias Mâncio (também chamada Manso ou Amâncio), a Cunha e a Mota (ou Motta), que além de participar das transações comerciais com terras e escravos, eram unidas por laços matrimoniais.
O Capitão Antonio Manuel Mâncio, como informamos anteriormente, era proprietário de várias terras e escravos e também Juiz de Paz da Freguesia de Nossa Senhorada Conceição do Coité – antes de eleito, já exercia a função por indicação do Presidente da Província da Bahia. Sua filha Alexandrina Maria de Jesus casou com o Alferes Antonio Apolinário da Mota e um filho, o Tenente Antonio Manuel Mancio Júnior, com Izabel Maria de Jesus a irmã do Alferes Antonio.
Sua outra filha, Izabel Maria de Jesus casou com Antonio João da Cunha, filho de um proprietário renomado na freguesia, José Antonio da Cunha. Após a morte do Capitão, em 20 de abril de 1856, seu genro o Alferes Antonio Apolinário da Mota assumiu a função de Juiz de Paz.
Estes casamentos ainda revelam que o Tenente Antonio Manuel Mancio Júnior, era primo de sua esposa Izabel Maria de Jesus; Alexandrina Maria de Jesus, também era prima do Alferes Antonio Apolinário da Mota e Izabel Maria de Jesus e Antonio João da Cunha também eram primos. Foi possível se chegar a esta conclusão através de uma análise dos casamentos que apresentassem algum tipo de intervenção, e nos três casos, foi necessáriaa licença da Igreja para que o casamento se realizasse.
Nestes casos, a Igreja Católica teria que dispensar para o enlace matrimonial os parentes em até 4º grau, fora os de 1º grau que era considerado pecado, senda caracterizado como incestuosa as relações envolvendo pais e filhos e também irmãos. Porém, nos casos de 2º a 4º grau seria necessário a liberação de algum clérigo para que a relação se oficializasse. Parentes de 2º grau eram considerados os filhos de dois irmãos, como foi o caso de Antonio Felix de Araújo que se casou com Maria Bernardina do Espírito Santo em 17 de julho de 1871, após ter sido dispensado pela Igreja por seu pai José Francisco de Araújo ser irmão do seu sogro Francisco Felix de Araújo.
Raymundo Nonato de Couto também precisou de dispensa para se casar com Justina Maria de Jesus em 27 de novembro de 1866, que era sua prima.
Victoriano Lopes da Silva, filho de Alvina Maria de Jesus e Rozendo Lopes da Silva, possuidor de muitas terras nas fazendas Santa Roza, Vargem Grande, Sacco do Marcoe Gangorra. casou-se com Firmina Francisca de Jesus, filha de José Joaquim de Santa Ana em 13 de setembro de 1870, a partir da Dispensa de Consangüinidade de 2º Grau.
Os casamentos com dispensa de 3º grau envolviam os filhos de dois “primos carnais”, ou seja, os netos de dois irmãos. Este foi o caso de João Thirbúcio da Cunha e Maria Bernardina D’Almeida que se casaram em 05 de fevereiro de 1859, assim como o matrimônio de José Nunes da Mota, genro do Tenente Manoel Joaquim Ramos com Antonia Bernardina de Jesus em 21 de outubro de 1865. Nesta mesma situação estiveram Marcolino Germano Lopes e Escolástica Antonia de Oliveira casados em 02 de outubrode 1870.
A dispensa de 4º grau envolvia os netos de dois “primos carnais” como aconteceu no matrimônio de José Braz Lopes e Delmira Bernardina do Espírito Santo realizado em 23de janeiro de 1866, com Manoel Ferreira Lima e Marianna de Jesus e Silva, que se casaram em 30 de maio de 1871, e ainda em 30 de novembro de 1867 com Avelino dos Santos Gil e Eria Maria dos Santos, e também com muitos outros em vários momentos.
Estes não foram casos isolados, a tabela abaixo demonstra que 60 dos 194 casamentos careceram de algum tipo de intervenção, e a que mais se destaca é a licença de consangüinidade, somando um total de 65,27%.
Existiram, ainda, casos que a consangüinidade abrange mais de um grau de parentesco, não foram encontrados muitos até então, porém reflete algumas condições nas quais os matrimônios se realizavam. Estas situações são consideradas “mixtas” por envolver outras relações de parentesco. Uma dispensa de 3º grau, “mixto” de 2º grau foi pedida por José Ancelmo de Oliveira e Hermenegilda Maria de Jesus em 14 de novembro de 1870, outra relação mista envolveu Manoel Pedro Carneiro e Leocádia Antonia de Oliveira ,desta vez de 4º grau, “mixto” de 3º grau.
Há ainda situações mais embaraçosas, como dispensa de relações que envolviam simultaneamente o 2º, 3º e 4º graus pedida por Manoel Joaquim Lopes e Josefina Lopes de Jesus para realização do matrimônio que aconteceu em 29 de julho de 1868.
João Fragoso considera que as ligações familiares consolidam a formação de uma elite mercantil que se apropriava da acumulação gerada no mercado interno. Esta elite era um grupo restrito de mercadores que investia na reiteração das relações escravistas, sem rompimento e sem transformações significativas com os laços conservadores, uma estratégia para manutenção do poder e do status.
Ilmar Mattos define “política de casamentos” para caracterizar as relações fortalecidas socialmente a tal ponto que nem as divisões partidárias foram fortes o suficiente para romper os laços criados pelos casamentos entre famílias proprietárias.
Para Smiles, o casamento é a união entre amor e as "qualidades do caráter". Ainda que em nenhum momento critique as práticas de casamentos "arranjados", ele dá a entender que é o amor a base do casamento - e da família -, aliado ao respeito e à admiração.
A verdadeira união deve ser fundada sobre as qualidades do carater [...] Mas ainda há alguma cousa mais do que o respeito e a estimação entre marido e mulher. Há um sentimento muito mais profundo, mais terno, que nunca pode existir entre homens uns com os outros, ou entre mulheres.
Assim, as famílias ampliaram as forma de solidariedade horizontal, ou seja, as relações entre as pessoas de um mesmo convívio social que podem ser visualizadas nas misericórdias, lojas maçônicas, sociedades políticas e guarda nacional e trazem como característica peculiar a necessidade de preservar monopólios.
Nos seus estudos sobre a vida familiar, Kátia Mattoso permite “levantar o véu deuma explicação para melhor apropriar-se daquilo a que os historiadores costumam chamar ‘a realidade brasileira’” e defende que
o comportamento social se entende todas as relações entre pessoas e outros grupos de indivíduos. Na Bahia, esses comportamentos afirmam-se na vida familiar, nas associações de tipo religioso e leigo e ainda através dos conflitos sociais. No âmbito desta análise impõe-se o estudo dos conflitos sociais.
Fragoso, Ilmar, Smiles e Kátia Mattoso abordam as questões familiares em óticas específicas e complementares. Primeiro Fragoso demonstra as relações entre uniões familiares e atividades econômicas. Ilmar, por sua vez, identifica a atuação política e o domínio familiar, Smiles demonstra a predominância dos sentimentos e amor e o respeito mútuo como ingrediente vital para o casamento e Mattoso ressalta o comportamento individual e a ligação com a sociedade.
As relações do âmbito familiar aparecem na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité como centro de questões mais abrangentes da sociedade nas esferas econômicas e políticas, constando a dominação de membros do mesmo núcleo familiar.
Apesar da maior parte dos casamentos ocorrer entre filhos legítimos, as tabelas a seguir demonstram outras situações, como casamentos entre escravos – a maioria de senhores diferentes - , entre legítimos e escravos, sendo maior o número de mulheres de filiação legitima casando-se com escravos.
Ser filho “legítimo” era ser reconhecido pelo suposto pai, dando a quem estivesse sob esta condição o direito de herdar os bens que existissem. Já os filhos considerados “naturais” eram geralmente fruto de relações ilícitas, trazendo apenas o nome da mãe, e mesmo que a sociedade soubesse a respeito destes filhos eles em nada tinham o direito de herança, a não ser se deixados em inventários e testamentos relatando o reconhecimento da filiação paterna e a parte que lhe cabe.
Apesar da quantidade dos casos de casamentos entre filhos considerados legítimos e escravos ser pouca, quatro casos apenas, o que destaca é que em apenas um dos casos foi um homem legítimo que se casou com uma escrava, os três outros casos se referem a mulheres, com filiação legítima declarada - e com seus pais vivos - que se casam com escravos.
A primeira situação envolvendo o homem livre e a escrava é mais recorrente na história da escravidão, porém a possibilidade de casamentos legitimados pela Igreja entre mulheres livres, não libertas, e escravos ainda não aparece na história das famílias baianas. E ainda resta uma questão de como fica a condição jurídica dos escravos após o casamento legitimado e sacramentado pela Igreja Católica com outra pessoa sendo livre.
Entre os casos estão o de Maximiana Maria de Jesus, que se casou em 10 de fevereiro de 1868 com Luiz, escravo de Francisco Cedrais, o de Thereza Maria de Jesus, que se casou em 07 de janeiro de 1866 com Innocencio, escravo de Antonio Cardoso e o de Joaquina Bernarda que casou-se com Manoel, escravo de Manoel Braz Lopes em 18 de julho de 1863.
A tabela seguinte demonstra situações envolvendo diversas condições:
No que se refere aos casamentos entre escravos e não-escravos, mesmo tendo ocorrido poucos casos, destas relações indicam que o sistema escravista não foi uniforme, mas se desenvolveu em especificidades que carecem de consideração para um estudo mais profundo e detalhado no século XIX na Bahia, pois a partir de 1850 com a Lei Euzébio de Queiróz fez-se necessário a interferência do Estado na esfera do trabalho escravo gerando leis como forma de controlar as tensões entre proprietários e escravos , como também para determinar o lugar de cada segmento social, elaborando “uma nova auto concepção de status e papéis sociais por parte dos negros e mestiços, a formação de novos ideais e padrões de comportamentos”.
Outra informação interessante, é que a grande maioria dos casos de casamentos entre escravos é de senhores diferentes, o que conduz a um questionamento de se pensar a formação da família escrava enquanto mais um instrumento de controle e de dominação, como se o senhor permitisse e até incentivasse os casamentos entre cativos para evitar fugas e rebeliões, ou então que estas organizações familiares fossem usadas para se obter concessões dos fazendeiros.
A permissão de casamentos entre escravos de senhores diferentes, bem como a situação dos filhos – se eram considerados “legítimos” por parte do pai ou se manteria como filho natural pertencendo apenas a mãe escrava são algumas das questões e dos vários caminhos que precisam ser analisados.
Os nubentes na maioria foram declarados como filhos legítimos, cerca de 43,1%, enquanto os filhos naturais somaram apenas 10,3% e 46,6% tiveram a filiação ignorada comomostra a Tabela VIII:
A ausência de declaração da origem dos filhos permite que se questione a legitimidade destes filhos aumentando consideravelmente os filhos nascidos de uniões consideradas foradas normas familiares. Segundo Maria Adenir Peraro,
o estudo da ilegalidade constituiu-se em um indicador de práticas sociais constitutivas de formas de organização familiar e diferenciadas, revelador de uniões consensuais duradouras e esporádicas inseridas no universo normativo da Igreja Católica.
Este tipo ausência de informação permite pensar variedades de situações envolvendo outros segmentos sociais, como filhos legitimados, libertos e filhos bastardos. É o caso, por exemplo, de Manoel Mancio Pereira, filho natural de Luiza Pereira, que tem grande possibilidade de ser filho bastardo do Capitão Antonio Manuel Mancio, pois morava na Faz. Boa Vista, na residência da família do Capitão Mancio, juntamente com sua esposa Theresa Maria de Jesus e seus filhos Felipa Maria de Jesus, Joana Cirila de Araújo, João Manoel Amâncio, Isabel Maria de Jesus, Alexandrina Maria de Jesus e o Tenente Antonio Manoel Mancio Junior. O casamento de Manoel Mancio Pereira com Maria Francisca de Jesus, filha legitima de Manoel Monte e Maria Teresa dos Santos, se deu no dia 03 de fevereiro de 1856, no mesmo dia em que houve o casamento de Izabel Maria de Jesus com Antonio João da Cunha.
O predomínio da atuação masculina na vida pública, tais documentos permitiu identificar alguns espaços em que a mulher participava. A tabela X demonstra que algumas mulheres são testemunhas de casamentos, apesar de ser um número bastante reduzido, apenas 15 entre 383 eram mulheres. Este espaço era apenas das mulheres casadas ou viúvas, pois durante os dez anos estudados não houve uma mulher que fosse testemunha sendo solteira, enquanto entre os homens, apesar da maioria ser casado, houve grande número de solteiros que serviram de testemunha.
Durante a declaração das terras da freguesia em 1855-1858, algumas mulheres também declararam suas propriedades. A maioria era viúva que herdaram terras do marido ou filhas que herdaram dos pais. Porém, a herança não era um privilégio masculino, muitos homens também informaram que a origem das suas propriedades era pelo recebimento de herança. As tabelas abaixo permitem fazer a conexão:
Muitas vezes, antes de realizar a celebração do matrimônio, sagrado e indissolúvel para a Igreja Católica, era preciso, em alguns casos, reatar a vida religiosa através da eucaristia (ou comunhão) e ainda, se necessário, estabelecer uma “pena” para o pecado cometido ou por faltas com o compromisso cristão. Dos 194 casamentos, em 42 foram aplicados os sacramentos da Eucaristia ou Penitência, e em outros, os dois.
A comunhão significa na comunidade cristã, “participação”, “comunicação”. Esse sacramento tem fundamental importância para a vida religiosa, pois significa ser membro de um mesmo corpo que a Igreja, corpo de Cristo. A comunhão se inicia através do Batismo e é alimentada através da Eucaristia e da disciplina penitencial. Já a penitência significa “penar”,“sofrer” por algo que possibilitará uma melhoria. É o sacramento da Igreja Católica em que o pecador confessa suas faltas e pecados, a fim de obter o perdão divino.
A partir das informações sobre os sacramentos aplicados, é possível identificar as condições religiosas em que eram legitimadas as uniões. As tabelas a seguir demonstram que na maioria dos casos os dois sacramentos eram aplicados em conjunto, e sendo menos constante a aplicação de um só, a partir daí, pode-se pensar sobre os tipos de ligações entre os nubentes e a Igreja.
A escassez de estudos das regiões sertanejas ajudou a construir a idéia de que no sertão as relações sociais vivenciadas ao longo do século XIX eram mais estreitas e mais flexíveis. O que se tem escrito sobre Conceição do Coité remete ao mito de origem da cidade: a imagem de um passado glorioso que foi estabelecida através da predisposição geográfica da região, que permitiria ser ponto de parada para longas viagens no interior da Bahia, possibilitando bom atendimento aos que por lá passassem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo do poder e da política desenvolvido pela História tem ampliado as questões relacionadas tanto ao desempenho de atividades institucionalizadas - cargos administrativos e funções - como também destrinchado processos de organização do poder, este último de grande destaque na teoria política contemporânea.
Através da história regional, grandes teorias generalizantes que buscavam abarcar todas as dimensões possíveis num determinado período histórico demonstraram necessidadede re-leituras, e também de perceber outras dinâmicas e outros processos que não estariam diretamente subordinados as regras gerais.
Paulo Gomes atenta para três contribuições importantes acerca do conceito de região, após ter se tornado um conceito-chave na Geografia e do estudo da História. Primeiro, o conceito de região permitiu, em grande parte, o surgimento das discussões políticas sobre a dinâmica do Estado, a organização da cultura e o estatuto da diversidade espacial; em segundo lugar, o debate sobre o conceito permitiu também a inclusão da dimensão espacial nas discussões que envolvessem a política, cultura e economia, e no que se refere às noções de autonomia, soberania, direitos, etc; e, por último, a percepção da relação entre a centralização do poder em um local e a extensão dele sobre uma área de grande diversidade social, cultural e espacial.
Pensar região é identificar as relações internas e externas de um espaço delimitado e dos processos de interligações entre os múltiplos focos de poder. Ilmar Mattos define como “uma construção que se efetua a partir da vida social dos homens, dos processos adaptativose associativos que vivem”.
Neste sentido, a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité, no Sertão dos Tocós, foi analisada enquanto uma unidade politico-administrativa inserida nas dinâmicas próprias desta região.
Geralmente identificado como um lugar isolado e sem grandes acontecimentos, o Sertão rompe a dicotomia com o Recôncavo e se mostra plural. Vários sertões da Bahia se destacam, se diferenciam e também se complementam nas pluralidades geo-culturais.
Através das produções literárias do Sertão do Tocós, a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité desponta enquanto um local sem conflitos e sem desentendimentos e ao mesmo tempo, dinâmico e promissor, aberto para acolher e servir, afinal todos aparecemcomo sendo irmãos na fé.
Na segunda metade do século XIX, os arranjos locais e as relações de poder, que também eram relações pessoais, desenvolvidas pela sociedade patrimonial e patriarcal, eram desempenhadas na Freguesia do Coité tendo o casamento e o apadrinhamento como dois elementos constituintes e delineadores da formação e consolidação dos grupos sociais, e na restrição de espaços e esferas do poder local.
Nas relações de poder de caráter “privado” onde as relações afetivas também são instrumentos de dominação e subordinação, a maioria dos recursos originados no Estado,transparece, no gerenciamento desses recursos, serem advindos, muitas vezes, dos chefes locais.
A concessão dessas políticas geralmente é atribuída à “bondade”, à “generosidade”, e a “favores” da elite dominante, servindo enquanto a base de sustentação do poderes gerenciados pelo grupo local.
Outros elementos simbolizavam poder, status e reconhecimento social. A propriedadeda terra foi destacada como determinante desse sistema de domínio político, justamente com a posse de escravos; ter patentes da Guarda Nacional era corporificar outras esferas e outros âmbitos no exercício de poder disciplinador e no cumprimento da justiça; negociantes desempenhavam atividades que controlavam a circulação de dinheiro, e que poderia“prender” pessoas através de dívidas e /ou concessões; os eleitores cumpriam as tarefas políticas e eram responsáveis por decisões que atingiam todos os habitantes da Freguesia; os professores, os tabeliães e os clérigos eram cercados por “prestígio” e pela “honra social” e por poderes considerados superiores a natureza humana, como o poder sagrado e o poder do saber num período onde o acesso as letras era muito restrito.
O cruzamento de diversas fontes foi imprescindível para o mapeamento dos poderes desempenhados na Freguesia e para identificar as pessoas, o exercício e as relações desempenhadas. Através desta interseção, foi possível constatar que o exercício de poderes e de políticas estava diretamente ligado ao desempenho de estratégias de solidariedade e de relações pessoais.
Porém, este trabalho não está completo. Muito ainda há que se buscar, questionar e discutir, e muito há que se aprender sobre os meandros da política na Bahia do século XIX.
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