Esse blog é sobre a história da minha família, o meu objetivo é desvendar as origens dela através de um levantamento sistemático dos meus antepassados, locais onde nasceram e viveram e seus relacionamentos inter-familiares. Até agora sei que pertenço as seguintes famílias (nomes que por vezes são escritos de forma diferente): Ramos, Oliveira, Gordiano, Cedraz, Cunha, Carvalho, Araújo, Nunes, Almeida, Gonçalves, Senna, Sena, Sousa, Pinto, Silva, Carneiro, Ferreira, Santos, Lima, Correia, Mascarenhas, Pereira, Rodrigues, Calixto, Maya, Motta…


Alguns sobrenomes religiosos que foram usados por algumas das mulheres da minha família: Jesus, Espirito-Santo...


Caso alguém tenha alguma informação, fotos, documentos antigos relacionado a família é só entrar em contato comigo.


Além desse blog também montei uma árvore genealógica, mas essa só pode ser vista por pessoas que façam parte dela. Se você faz, e gostaria de ter acesso a ela, entre em contato comigo.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Fotos Antigas de Salvador - Década de 50

Aspecto do mercado de Água de Meninos em Salvador (BA) - maio 1952
Aspecto do mercado de Água de Meninos em Salvador (BA) - maio 1952


Aspecto do mercado de Água de Meninos em Salvador (BA) - maio 1952
Aspecto do mercado de Água de Meninos em Salvador (BA) - maio 1952

Mercado Popular de Água de Meninos em Salvador (BA) - maio. 1952
Aspecto do mercado de Água de Meninos em Salvador (BA) - maio 1952

Vista aérea de Salvador (BA) - jun. 1954
Vista aérea de Salvador (BA) - jun. 1954

Igreja do Bonfim em Salvador (BA) - déc. 50
Igreja do Bonfim em Salvador (BA) - déc. 50

Plano inclinado do Taboão em Salvador (BA) - déc. 50
Plano inclinado do Taboão em Salvador (BA) - déc. 50

Estação de chegada do Plano Inclinado do Pilar em Salvador (BA) - déc. 50
Estação de chegada do Plano Inclinado do Pilar em Salvador (BA) - déc. 50

Plano Inclinado do Pilar em Salvador (BA) - déc. 50
Plano Inclinado do Pilar em Salvador (BA) - déc. 50

Ladeira da Montanha em Salvador (BA) - déc. 50
Ladeira da Montanha em Salvador (BA) - déc. 50

Elevador Lacerda em Salvador (BA) - déc. 50
Elevador Lacerda em Salvador (BA) - déc. 50




Igreja de São Francisco em Salvador (BA) - déc. 50
Igreja de São Francisco em Salvador (BA) - déc. 50

Procissão Marítima do Senhor dos Navegantes em Salvador (BA) - [195-?]
Procissão Marítima do Senhor dos Navegantes em Salvador (BA) - [195-?]

Procissão em frente da Igreja N.Srº Bom Jesus dos Navegantes (BA) - [195-?]
Procissão em frente da Igreja N.Srº Bom Jesus dos Navegantes (BA) - [195-?]

Vista panorâmica da cidade : Salvador, BA - [19--]
Vista panorâmica da cidade : Salvador, BA - [19--]

Palácio Arquiepiscopal : Salvador, BA - [19--]
Palácio Arquiepiscopal : Salvador, BA - [19--]

Mercado Modelo : [vista panorâmica da cidade] : Salvador, BA - [19--]
Mercado Modelo : [vista panorâmica da cidade] : Salvador, BA - [19--]

Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo : Salvador, BA - [19--]
Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo : Salvador, BA - [19--]

[Vista panorâmica da cidade : Praia] Porto da Barra : Salvador, BA - 1957
[Vista panorâmica da cidade : Praia] Porto da Barra : Salvador, BA - 1957

Dique [do Tororó : vista panorâmica da cidade] : Salvador, BA - 1957
Dique [do Tororó : vista panorâmica da cidade] : Salvador, BA - 1957

Ladeira do Alvo : Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo : Salvador, BA - [19--]
Ladeira do Alvo : Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo : Salvador, BA - [19--]




sexta-feira, 10 de abril de 2020

Topo (Nossa Senhora do Rosário)

Recentemente descobri que um dos meus antepassados que veio ao Brasil - Manoel Antônio Luiz, nascido 21/03/1775 -, veio dos Açoires, mais precisamente da Vila do Topo. Então resolvi pesquisar um pouco sobre o local, abaixo está a descrição da Wikipedia.






Topo é uma vila e freguesia açoriana do concelho da Calheta de São Jorge, com 9,35 km² de área e 508 habitantes (2011), de que resulta uma densidade populacional de 54,3 habitantes/km². O nome oficial da freguesia é Topo (Nossa Senhora do Rosário), o orago da paróquia católica correspondente à povoação. Entre 1510 e 1867 a Vila do Topo foi sede do concelho do Topo, agrupando a actual vila e a vizinha freguesia de Santo Antão, então um mero curato. A vila foi devastada pelo Mandado de Deus, um terramoto ocorrido a 9 de Julho de 1757, sendo de novo duramente atingida pelo Terramoto de 1 de Janeiro de 1980.
Conservando uma arquitectura distinta, fortemente influenciada pela arquitectura da cidade de Angra, na vizinha ilha Terceira, com a qual manteve durante séculos relações privilegiadas através do seu porto, a Vila do Topo dispõe hoje de uma moderna Escola Básica Integrada, instalada na cerca do antigo Convento de São Diogo (franciscano), sendo um dos mais importantes pólos de desenvolvimento da ilha de São Jorge. A riqueza das pastagens da falda leste da Serra do Topo faz da vila e da vizinha freguesia de Santo Antão uma das principais origens do leite que produz o Queijo de São Jorge.

Geografia

A Vila do Topo situa-se no extremo sueste da ilha de São Jorge, numa zona aplainada, de declive suave que iniciando-se na Ponta do Topo, onde se situa o farol, se prolonga até à freguesia de Santo Antão, anteriormente um arrabalde da Vila. É uma região de terrenos férteis, propícios para a produção de trigos (aliás a zona do Topo é a única nos Açores onde este cereal ainda se cultiva), separada das restantes povoações da ilha pela alta e escarpada Serra do Topo, onde se destacam o Pico do Facho, o Pico das Rocas, o Pico dos Frades, o Pico da Pedra Vermelha.
Este enquadramento geográfico fez com que durante séculos fosse mais fácil sair da vila por mar do que atravessar a serra, o que deu uma particular importância ao Porto do Topo, um pequeno cais escavado na falésia sueste da ilha.
Este acesso privilegiado à Terceira influiu poderosamente no desenvolvimento do Topo, permitindo ligações familiares e comerciais com a vizinha Terceira que depois se reflectiram no falar, na arquitectura e mesmo nos patronímicos das famílias locais.

História

Apesar de ser disputada a asserção de que o Topo terá sido a primeira povoação fundada na ilha de São Jorge, a fundação da povoação do Topo terá ocorrido entre 1480 e 1490, altura em que se estabeleceu uma colónia de flamengos, capitaneada por Willem van der Hagen.
Este aventuroso flamengo, que posteriormente adoptou o nome Guilherme da Silveira, é hoje o tronco da numerosa família ‘’Silveira’’ de São Jorge. Willem van der Hagen encontra-se sepultada na ermida anexa ao Solar dos Tiagos, um magnífico imóvel oitocentista classificado como de interesse público.
Dada a proximidade relativa em relação à ilha Terceira e a grande dificuldade de ligação à vizinha vila da Calheta que resultava da travessia da Serra do Topo (onde a estrada sobe até aos 900 m de altitude), a vila esteve sempre muito ligada à ilha cidade de Angra, sendo muito frequentes os casamentos entre pessoas oriundas de ambas as povoações, formando-se um densa teia familiar que fazia do Topo um prolongamento daquela cidade. Esta proximidade está patente na arquitectura e no falar, mais próximo do terceirense do que das restantes comunidades jorgenses.
Pelo seu desenvolvimento mereceu ser elevada a vila em 12 de Setembro de 1510, transformando-se numa das capitais da ilhas, tendo contudo o seu desenvolvimento limitado pela falta de um hinterland que lhe permitisse expansão económica. De facto a vila do Topo, até meados do século XX não tinha ligação adequada ao resto da ilha, dada a dificuldade em transpor a Serra do Topo por terra.
Com a racionalização da divisão administrativa imposta pela reforma administrativa de 24 de Outubro de 1855, o pequeno concelho foi extinto, sendo decretada a sua anexação ao concelho da Calheta, o que se veio a consumar a 1 de Abril de 1870, depois de se ter tornado efectiva, pesem embora os protestos populares, em 1867.
Apesar de extinto o concelho e perdido o título de vila, o Topo manteve sempre uma feição urbana distinta, com as suas ruas bem traçadas. Ladeadas por casas de arquitectura erudita que não tinham paralelo em qualquer povoação rural do arquipélago. Por essa razão, o lugar continuou a ser conhecido pela Vila, nunca sendo aceite pela população a perda de estatuto. Reconhecendo essa realidade, pelo Decreto Legislativo Regional n.º 29/2003/A, de 24 de Junho, a localidade recuperou a categoria de vila, sendo hoje a terceira vila da ilha.
O antigo concelho do Topo, hoje integrado no da Calheta de São Jorge, abrangia o território das actuais freguesias de Vila do Topo e de Santo Antão, que foi desmembrado daquela. De acordo com os censos de 1849 e 1864 tinha, respectivamente, 2 909 e 2 817 habitantes.
A igreja primitiva era do século XVI, mas foi destruída pelo sismo de 9 de Julho de 1757, o famigerado Mandado de Deus, e reconstruída sob a direcção do padre Matias Pereira de Sousa. As obras foram dirigidas José de Avelar de Melo e concluídas em 1761. No seu adro foram sepultadas, em duas valas comuns, 84 vítimas do Mandado de Deus.
A vila foi de novo destruída pelo terramoto de 1980, em consequência do qual ficou profundamente alterada a sua estrutura e arquitectura, tendo levado a uma grande perda de população. Aquando daquele sismo, foi a localidade da ilha de São Jorge mais atingida, registando, para além de avultados prejuízos, 11 mortos e 9 desaparecidos, soterrados sob milhares de toneladas de pedra resultantes do desabamento de falésias na costa norte.
De cerca de 2 000 habitantes, a população caiu para apenas cerca de 500 residentes permanentes, num processo de acelerada perda demográfica que ainda não terminou.
A decisão, tomada em 1997, de transformar o antigo convento franciscano de São Diogo numa Escola Básica Integrada, permitindo a conclusão do ensino básico na Vila, veio fixar a população. Com esse objectivo, o Topo dispõe desde 2003 de um moderno e arquitetonicamente arrojado edifício escolar, que inclui um pavilhão gimno-desportivo, cantina, laboratórios e biblioteca, onde foi concentrada toda a actividade escolar da vila e da vizinha freguesia de Santo Antão, levando ao encerramento das 6 escolas anteriormente existentes.
O porto do Topo desempenhou até meados do século XX um importante papel referencial nas ligações marítimas entre as ilhas de São Jorge e Terceira, dada a sua particular localização geográfica. Apesar de no local o acesso ao mar ser difícil, dada a elevada falésia de bagacina e outros piroclastos existente, foi rasgada na rocha, à força de picareta, uma escadaria que dava acesso ao chamado Cais velho. Esta escadaria foi melhorada, por sucessivas remodelações, nomeadamente nos anos de 1560 e 1637.
A importância do Porto no acesso à Terceira era tal que em 1877, já depois da anexação do concelho, a Câmara da Calheta, em reunião de 6 de Junho, deliberou colocar um farol no porto da Vila do Topo, que foi o primeiro da ilha de São Jorge.
Com o surgir da baleação em meados do século XIX, o Porto do Topo foi o primeiro da ilha onde se armaram botes baleeiros para a caça ao cachalote, tendo a primeira companha sido fundada no ano de 1885. As canoas eram guardadas em furnas escavadas na escarpa sobranceira ao porto e algumas foram preservadas por derrocadas da mesma escarpa.
O Porto foi até aos anos de 1970 escala dos iates que faziam a carreira regular de passageiros entre o Faial e a Terceira, embarcando ali carga e passageiros.
Um dos filhos mais ilustres da Vila do Topo foi o bispo D. Manuel Bernardo de Sousa Enes, titular da Diocese de Macau, da Diocese de Bragança-Miranda e ainda da Diocese de Portalegre.
A vila do Topo é constituída pelos seguintes lugares principais:
  • Vila;
  • Ponta;
  • Engenho.

Lugares de interesse

Apesar de duramente atingida pelo terramoto de 1 de Janeiro de 1980, a vila do Topo mantém um conjunto de estruturas urbanísticas e de edifícios de grande beleza e equilíbrio. Entre os pontos de interesse na vila, destacam-se os seguintes:
  • Forte do Topo
  • Pico do Facho
  • Pico dos Cabecinhos
  • A Ponta do Topo, com o farol da Ponta do Topo e o fronteiro ilhéu do Topo, onde é apascentado gado que é obrigado a fazer a travessia a nado;
  • O Convento de São Diogo e igreja anexa, hoje sede da Escola Básica Integrada da Vila do Topo;
  • A Matriz de Nossa Senhora do Rosário, datada de 1761, memória da grande catástrofe do Mandado de Deus;
  • O Solar dos Tiagos e ermida anexa, local de enterramento do pioneiro flamengo Willem van der Hagen;
  • O porto do Topo, escavado na encosta de bagacina vermelha, local de grande beleza;
  • O império da Irmandade do Divino Espírito Santo, ao estilo terceirense;
  • As casas da antiga Câmara e a rua principal.
  • Complexo Vulcânico do Topo
  • Miradouro do Topo
  • Miradouro da Canada do Pessegueiro


quinta-feira, 2 de abril de 2020

MARTINHA: A HISTÓRIA DE UMA EX-ESCRAVIZADA NO SERTÃO DE COITÉ (1870-1933)


Autoria: EDIMÁRIA LIMA OLIVEIRA SOUZA


MARTINHA: HISTÓRIA DE UMA CATIVA NO SERTÃO DA BAHIA

(...)
O ano era de 1870, exatamente no dia 11 do mês de maio. O escrivão da Freguesia de
Nossa Senhora da Conceição do Coité registrou uma escritura de compra e venda de uma
escrava. Era chamada de Martinha, crioula, com vinte anos de idade, aproximadamente. O
vendedor era Manoel José da Costa e o comprador Manoel Cedraz de Oliveira Júnior. O valor
pago por esta cativa foi de 800$000 (oitocentos mil-réis).

Seu valor surpreende, por ser o mais alto cobrado por uma escrava entre 1869-1888 na freguesia citada. Mulheres na mesma idade e com boa saúde eram vendidas por 500$000 mil-réis, em média.
No mesmo dia em que a escritura de compra da escrava Martinha foi registrada, localizamos, logo em seguida, outro documento, em que um menino de 4 para 5 anos de idade foi vendido ao mesmo Manoel Cedraz. Seu nome era Saturnino, “pardinho” do domínio de Dona Bernardina Claudina do Espírito Santo. Chamou a atenção o fato da proprietária do menor ter informado que havia comprado o menino de Manoel José da Costa, ex-proprietário de Martinha. A partir de outros documentos, encontramos evidências de que Saturnino era filho de Martinha.

Posteriormente, achamos a nossa personagem citada em outro documento, datado de 1883, uma escritura de perfilhação feita por Manoel Cedraz de Oliveira reconhecendo cinco filhos dela como sendo filhos naturais dele também. Quatro desses filhos eram crianças entre 10 e 2 anos, tidos com Martinha Maria de Jesus, mulher solteira. Ao observar o assento de batismo do primeiro filho de Martinha, escrava de Manoel Cedraz, percebemos que não se tratava de uma coincidência de nomes, a mesma cativa que havia sido comprada, há cerca de 13 anos, era a mãe dos filhos de seu proprietário e já havia alcançado a alforria.

Assim, nos deparamos com uma família dividida pela condição jurídica. O pai era um homem livre e proprietário de escravos, a mãe, uma ex-escrava, liberta, provavelmente, antes de 1883, como foi constatado na escritura de perfilhação, em que seu nome aparece com os sobrenomes “Maria de Jesus”. O primeiro filho dela com Manoel Cedraz, Antonio Frutuoso, nasceu em abril de 1874 e foi batizado em maio do mesmo ano, ele foi declarado como “liberto” pela Lei no 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre.

A partir do batismo do segundo filho dela com seu senhor, Joviniano, nascido em 2 de fevereiro de 1879 e batizado em abril, a condição jurídica de Martinha mudou para “liberta”. Assim, ela deve ter conquistado sua liberdade entre os anos de 1878 e 1879.4 Notamos, a partir dos nomes dos filhos e dos pais deles, que houve um relacionamento amoroso/sexual entre senhor e escrava, relação essa que pode ter começado antes mesmo da compra feita por Manoel Cedraz da escrava. É possível que a compra tenha sido um meio de trazê-la para seu domínio. O valor estipulado por Manoel José da Costa pode ser um indicativo do interesse demonstrado pelo comprador.

Algumas questões surgiram mediante a história dessa cativa. Como era a relação de Martinha com os familiares de Manoel Cedraz e, também, com os demais escravos de seu senhor? Possivelmente, havia um tratamento diferenciado em relação a ela. Quem era o homem que, branco e de posses, se envolveu em um relacionamento de concubinato com uma escrava de seu domínio e, depois, se casou com ela? Ou mesmo, quais as situações de preconceito vivenciadas por eles a partir desse relacionamento? Antes, contudo, é necessário conhecer o mundo ao qual Martinha pertencia.

2.1 Conhecendo o mundo de Martinha

Martinha era natural da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité. Pela evidência da idade dela em 1870, ela teria nascido, provavelmente, em 1849. Era filha de Antonia Maria de Jesus e Francisco de tal. Sobre sua ascendência, sabemos apenas que ela era fruto de uma relação legitimada entre uma cativa e um homem que não podemos afirmar ao certo a condição jurídica. No registro de batismo, ela aparece como “filha legítima”, o que pode evidenciar uma relação oficializada pela Igreja Católica. Martinha era escrava de Manoel Alves de Jesus e de sua mulher Bernardina Claudina do Espírito Santo, donos da Fazenda Sucavão. Após a morte de seu proprietário, ela passou ao domínio da filha do ex-senhor, Rita Maria de Jesus, e do marido, Manoel José da Costa. Martinha viveu na dita freguesia, na casa de seu proprietário Manoel da Costa, até 1870, período em que foi vendida a Manoel Cedraz. Possivelmente, viveu nas mesmas condições que os demais escravos sob as circunstâncias do sistema escravista. Martinha foi descrita como “do trabalho da lavoura” e de “serviços domésticos”, atividades comuns às cativas da freguesia citada.

(...)

2.2 Martinha: mãe de um pequeno cativo

A escrava Martinha era filha da cativa chamada Antonia Maria de Jesus. Como muitas escravas, deve ter aprendido cedo a diferença que havia entre sua condição de propriedade e a dos seus senhores, homens brancos29, pardos ou mulatos30 e de posses. O que sabemos de nossa personagem é que pode ter sido separada de seus irmãos e de sua mãe ainda criança.

(...)

Em 1864, Rita Maria de Jesus, filha de Manoel Alves da Costa e Bernardina Claudina do Espírito Santo, casou-se com Manoel José da Costa. Ele era filho de um português chamado Manoel José Chaves da Costa e Constância Lima da Costa, proprietários de uma fazenda denominada Pedro, presente na Declaração de Terras de 1857.32 O casal recebeu, em uma partilha de bens, a escrava Martinha, que passou a morar com ele, possivelmente, na Fazenda Algodões, próxima à localidade de Salgada.

Assim como muitas mulheres no Brasil imperial, fossem livres ou escravas, Martinha engravidou cedo, com idade entre 15 e 16 anos, aproximadamente. Logo após o nascimento de seu primeiro filho, Saturnino, ela viu recair sobre si uma das principais formas de violência contra uma mulher e mãe escrava: a ameaça de separá-la do filho, por motivo de venda ou partilha dos bens dos senhores e senhoras.

Muitas cativas viveram relacionamentos com homens na mesma condição jurídica que elas, escravos, ou com os homens livres, resultando no nascimento de filhos chamados de ilegítimos. O pai de Saturnino pode ter sido um filho ou parente de seus proprietários ou, até mesmo, de um escravo que convivia com Martinha. São várias as possibilidades. Sabemos, somente, que o menino era pardo, o que nos leva a suspeitar que o pai era branco ou pardo. Martinha e Saturnino formavam uma família, denominada pela historiografia de matrifocal, em que as mães viviam sozinhas com seus filhos, sem a presença paterna, pelo menos, oficialmente, uma vez que muitos casais escravos viviam relacionamentos não regularizados pela igreja. Na documentação consultada não foram encontrados nomes de escravos homens pertencentes a Manoel José da Costa. 

(...)

Após Martinha dar à luz ao seu filho Saturnino, possivelmente, deve ter vivido momentos angustiantes, diante da possibilidade de seus proprietários resolverem vendê-lo. Como muitas mães, aleitou sua criança e ansiava traçar planos para que alcançasse meios de proporcionar a ela condições melhores de vida. Talvez, sonhasse com uma forma de comprar a liberdade de seu filho e a dela também, para viverem na condição de libertos.

Não sabemos, com certeza, quando Saturnino foi vendido para Bernardina Claudina do Espírito Santo. A escritura de compra e venda dele, registrada em 1870, expõe apenas que ele foi cativo de Manoel José da Costa. É importante considerar que o vendedor e a compradora eram parentes, pois Manoel José da Costa era casado com a filha de D. Bernardina, e que, em 1870, Saturnino estava com 4 ou 5 anos. Será que essa separação, de fato, ocorreu? Ou, mãe e filho viviam juntos na mesma propriedade e apenas os seus proprietários legais eram diferentes?

(...)

Outra suposição plausível é que Martinha e Saturnino permaneceram no mesmo
endereço por conta da Lei de 1869, que proibia a separação das mães e de seus filhos menores
de 12 anos de idade.

(...)

Sobre a separação entre Martinha e seu filho Saturnino, podemos destacar duas possibilidades. Os descendentes dela informaram que o menino foi separado da mãe logo após dois meses de nascido e vendido para outra pessoa. Todavia, ao examinar o parentesco que havia entre o casal vendedor e a compradora, pode-se supor que mãe e filho, talvez, convivessem no mesmo espaço ou morassem em localidades próximas. Outra possibilidade seria a narrada pelos descendentes de Martinha, através da qual contaram que o menino foi bruscamente retirado dos braços de Martinha, ainda muito pequeno, e que vivia distante dela.

(...)

Segundo o memorialista Orlando Barreto, Martinha era “a moça mais bela da região”. Como bem retratou o seu bisneto Romão Oliveira, “ela tinha algo diferente, algum diferencial que as outras não tinham...”. Era “desenvolvida”, como acrescentou D. Nininha, sobrinha- neta de nossa personagem. Mas, quem era esse Manoel Cedraz, que escolheu uma de suas cativas para constituir família?

2.3 Manoel Cedraz... Quem era, afinal, esse homem?



Manoel Cedraz de Oliveira Júnior era filho de Manoel Cedraz de Oliveira Sales e Francisca Xista de Oliveira; bisneto de Antonio Frutuoso de Oliveira Maia; e apontado como o fundador da cidade de Serrinha. Pela idade com que ele faleceu, 88 anos, em 1916, é possível que tenha nascido em 1828. Ele aparece nos documentos analisados como natural da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité.

Manoel Cedraz era conhecido na região pelo apelido de Mané Tenda. Seu pai era dono da Fazenda Cedro. Por ele achar bonito o termo derivado do nome da fazenda, adotou o Cedraz como sobrenome. Ser branco e ter um sobrenome reconhecido pela sociedade era um meio de garantir status.

O Cedraz foi um dos primeiros núcleos familiares a morar na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité, o que tornou esse sobrenome reconhecido entre os seus habitantes. A família de Mané Tenda era formada por proprietários rurais, o que conferia prestígio social e acesso às patentes na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité durante o século XIX. Seus pais, por exemplo, eram donos das fazendas Flores e Saco dos Porcos. Em 1870, quando efetivou a compra de Martinha, Manoel Cedraz vivia na Fazenda Saco dos Porcos, junto com seus pais.

(...) Suspeitamos que Mané Tenda também criasse gado, uma vez que no inventário de suas fazendas foram listados os currais. Como já foi mencionado, Manoel Cedraz Júnior também era dono de escravos, num total de 9 cativos. Infelizmente, nem o inventário de seus pais, nem o dele foram encontrados, contudo, percebemos que se tratava de uma família abastada para os padrões de riqueza do local e época em que viveram. Um dos seus irmãos comprou algumas fazendas, em 1873. José Cedraz de Oliveira comprou partes da Fazenda Saco dos Porcos, e em 1881, comprou a fazenda denominada Rio da Pedra. 

(...)

A primeira eleição em que o arraial de Conceição do Coité participou ocorreu em 31 de outubro de 1881. O objetivo era eleger um deputado à Assembleia Geral Legislativa. Na ata desta eleição, encontramos os nomes de vinte e seis eleitores alistados na Vila de Riachão do Jacuípe pertencentes à freguesia citada, dentre eles, aparece o nome de Manoel Cedraz de Oliveira Júnior, que faltou à votação por motivos de doença. Mané Tenda havia mandado um ofício informando que estava acometido de uma moléstia.

Para ser eleitor votante no Brasil imperial, era necessário, entre os critérios determinados pela Constituição de 1824, que o indivíduo fosse do sexo masculino, livre e maior de 25 anos. Deveria, também, saber ler e escrever e poder comprovar renda anual de 100$000 mil-réis para eleitor de paróquia e 200$000 mil-réis para eleitor de província. A escolha de Manoel Cedraz Júnior como eleitor significa que ele tinha uma renda anual acimade 100$000 (cem mil-réis). O fato dele  conseguir comprar no mesmo ano dois cativos por 1:250$000, evidencia que tinha uma atividade econômica capaz de lhe permitir uma vida com certa tranquilidade financeira.

Nos deparamos com um documento em que Manoel Cedraz de Oliveira concedeu um empréstimo na quantia de 1:000$000 (um conto de réis) a um certo Antídio Antonio da Rosa,em 1905. Esse Antídio  havia pagado apenas 800$000, ficando com uma dívida de 200$000. Ele faleceu, deixando o débito para a sua família pagar. Ao que nos parece, a família não assumiu a dívida, e dois anos após a morte do devedor, Manoel Cedraz entrou com um processo exigindo o pagamento do valor. Outras pessoas também requereram o pagamento de débitos deixados pelo morto, como Antonio Félix de Araújo (12$320), evidenciando que ele havia passado por momentos de crises nos últimos dias de vida. Será que ele foi vítima de alguma praga em suas plantações ou perdeu seus animais devido a um período de estiagem? São apenas suposições baseadas no histórico de uma região castigada por longos períodos sem chuva, em que a caatinga perde suas folhas e a terra torna-se infértil. A sentença saiu com a seguinte afirmação: “Fica autorizado ao inventariante fazer o pagamento de duzentos mil reis a Manoel Cedraz de Oliveira”. Este processo estava anexado ao inventário de Antídio,63 ao analisar o documento, encontramos o demonstrativo das despesas em que aparece o valor pago aos requerentes. O empréstimo de dinheiro a juros, assim como a venda de mercadorias a prazo, era prática comum no período em estudo, principalmente, em regiões castigadas constantemente por secas e, consequentemente, perda de produtos agrícolas e animais.

Sobre a vida afetiva, pudemos verificar que Manoel Cedraz era solteiro e que havia tido um relacionamento com uma mulher solteira, Justina Maria de Jesus. Deste relacionamento,nasceu um menino chamado Manoel Amaro de Oliveira, que, possivelmente, veio ao mundo antes de 1867, pela idade declarada em 1883, época em que o rapaz já havia alcançado a maioridade.

Sobre esta Justina, retomaremos as discussões em outra seção. Investigando a vida de Manoel Cedraz, percebe-se que ele fazia parte do principal grupo privilegiado da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité, porém, o envolvimento com uma escrava que comprou para servi-lo, com quem depois veio a constituir uma família que agregava um homem livre, uma escrava e seus filhos nascidos libertos, alterou os rumos de sua história.

2.4 O encontro de dois mundos 

A história de Manoel Cedraz e Martinha teve início, para nós, no ano de 1870, quando foi registrada a escritura de compra dela e do menino Saturnino. Segundo a memória de seus descendentes, ele passou na residência de seu conhecido Manoel José da Costa e pediu água para beber, então, o dono da casa ordenou que sua cativa Martinha fosse buscar. Porém, a 37 moça tropeçou e quebrou a caneca que trazia com a água. Ao ver o embaraço da cativa, seu proprietário lhe repreendeu com uma bofetada, o que teria suscitado no visitante um sentimento de compaixão pela moça. Algo havia lhe chamado a atenção, teria percebido que a escrava “tinha os mais lindos traços”. De acordo com os descendentes de Martinha, ela era uma mulher bonita, com um belo corpo, com uma beleza diferenciada.65 Sobre isto, sabe-se que “a beleza das mulheres escravas aparecia com frequência nos anúncios de compra e venda de escravos em jornais baianos”. 

Conta-se que, a partir daquele momento, Manoel Cedraz buscou comprar aquela escrava e fez a proposta ao dito proprietário. A escritura foi registrada em 26 de maio de 1870, mas, algumas informações nos chamaram atenção. A cativa em questão foi declarada como crioula, com 20 anos de idade, vendida por uma quantia considerada alta, 800$000 (oitocentos milréis). Consta, ainda, que ela já estava em poder do novo proprietário antes do registro da escritura de compra. Ele também já havia quitado a quantia cobrada. (...)

A cativa foi declarada como crioula na escritura de compra e venda registrada em 1870, porém, a sua cor aparece diferente nos assentos de batismos. Percebemos que as designações de cor dos cativos variavam muito a partir do olhar e registro de escrivães e padres ou das declarações feitas pelos próprios proprietários. Essas designações eram feitas com base nos conceitos de cor próprios da época. No documento de compra, Martinha foi qualificada como crioula, caracterização comum aos escravos nascidos no Brasil. No assento de batismo de seu filho Antonio Frutuoso, em 1874, ela foi classificada como preta. 

(...) Sabe-se que no mesmo dia em que foi registrada a escritura de compra e venda da escrava Martinha, foi também registrada a escritura de Saturnino, com idade de 4 para 5 anos, do domínio de Bernardina Claudina do Espírito Santo, por 250$000 mil-réis. O mesmo homem que havia comprado nossa protagonista, comprou também o filho dela. Mas, qual a importância da compra de um cativo tão pequeno, que só daria lucros para seu senhor anos depois? É bem provável que Manoel Cedraz tenha estabelecido um compromisso com Martinha para retirar os dois, ela e seu filho Saturnino, do domínio de Manoel José da Costa. As compras e vendas de escravos envolviam, por vezes, a aquiescência dos cativos. 

Algumas considerações podem ser feitas para entender o que motivou a compra de Saturnino. Consta que o menino era filho da escrava Martinha (algo que só descobrimos com o cruzamento das fontes). É importante considerar que era comum a compra de mulheres em companhia dos seus filhos, um compromisso que pode ter sido firmado entre as partes envolvidas nas negociações de compra e venda ou mesmo entre Manoel e Martinha. A compra do menino também foi motivada pelo desejo de Cedraz em possuir a cativa e isso fazia parte da realidade da escravidão. Outra possibilidade é a de que Martinha ainda convivesse com o menino e, assim, no ato da compra dela, teriam imposto como condição para a negociação a compra de mãe e filho juntos, com o intuito de não separá-los. Esta era uma prerrogativa da Lei de 1869, que proibia separar os filhos menores de 12 anos de suas mães, assim, é provável que Martinha e Saturnino vivessem na mesma propriedade. 

O fato é que o menino foi comprado e passou a morar com sua mãe na Fazenda Saco dos Porcos, local onde morava a família de Manoel Cedraz: o pai, a mãe e, talvez, ainda algum irmão dele. Possivelmente, a família dele não desconfiava de suas intenções com aquela compra, mas o que aconteceu é que cerca de três anos depois da efetivação do negócio, nasceu um filho da dita escrava, que foi batizado com o nome de Antonio, em 1874. No assento de batismo, constou apenas o nome da mãe, a escrava Martinha, do domínio de Manoel Cedraz. Descobrimos, mais tarde, que ele era filho de Manoel Cedraz. Já expomos que ele tinha um filho com Justina Maria de Jesus. Quem teria sido, afinal, esta mulher, diante das diversas mulheres denominadas de “Justina Maria de Jesus” que encontramos na documentação? Seria ela uma negra, uma cativa que alcançou a liberdade? Ou, seria uma mulher branca? Achamos, também, uma Justina Maria de Jesus casada com um certo Manoel José da Silva, em um assento de batismo de um filho deles, o menino Benvindo. Em 1879, 40 batizaram mais um filho, Ricardo da Silva, e, em 1881, uma filha do casal foi batizada, Joana da Silva. O Sr. Romão relatou que seu pai 

[...] contava que o velho (Mané Tenda) tinha uma mulher aí... Aí, teve uma briga... Ele brigou com um não sei quem, e o homem bateu nela e aí o velho ia processar esse cara... Aí, ele falou com João Trabuco, que era tirado a advogado, aí João Trabuco aconselhou, disse a ele, disse ao cara, só tem um recurso pra você não ser processado pra acabar com isso. O cara perguntou: E o que é? Casa com a mulher... Aí, o cara se viu obrigado, casou com a mulher que ele tinha batido pra não ser processado pelo Mané Tenda. [...] Isso foi antes de Martinha... Aí, ele tinha um filho com essa mulher e deu uma Fazenda chamada Melancia... Aí, era esse filho... Eu não sei bem, pode ter sido o Manoel Amaro, porque um filho desse cara foi morar lá pros lado de Santo Amaro, tinha o sobrenome Cedraz das Mercês... Meu pai contou [...]. 

Deparamos com o registro de casamento de uma Justina Maria de Jesus, de 29 de junho de 1870, mesmo ano de compra de Martinha. O noivo era Martinho de Souza de Jesus. No documento, não aparecem os nomes dos pais dos noivos. Em 1887, uma Justina Maria de Jesus, casada com Donato Alves da Silva, batizou um filho de nome José Alves da Silva. Anterior a esta data, em 1856, Justina Maria de Jesus batizou a filha Anastácia, não aparece o nome do pai da menina no registro. Assim, fica difícil determinar qual dessas foi a Justina mãe de Manoel Amaro, filho de Manoel Cedraz. 

Mas, um Manoel foi batizado, em 1857, como filho de uma Justina Maria de Jesus. Seria ele o filho de Mané Tenda? A ausência do sobrenome é normal nos assentos de batismos. Sobre a Fazenda Melancia, que foi dada a ele pelo pai, não foi localizada na relação da declaração de terras da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité, nem nas escrituras de compra e venda de terras. Mas, através dos relatos orais, descobrimos que ficava localizava nas terras da Fazenda Urussú, uma das propriedades rurais de Manoel Cedraz. 

Essa falta de comprovação nos documentos escritos quanto à doação da fazenda não quer dizer que não tenha acontecido. Muitas propriedades rurais mudavam de nomes com o decorrer do tempo. Todavia, ficaram registrados nas memórias de descendentes de antigos moradores da região que ouviam referências a tais nomes através de seus antepassados. 

Seria Justina uma ex-escrava ou mesmo uma pessoa de cor, parda ou crioula? Gilberto Freyre já apontou a preferência de alguns homens brancos e de famílias proprietárias de escravos por mulheres negras. Muitos homens iniciavam a vida sexual com as cativas de seus pais, às vezes, por consentimento e, em outras tantas circunstâncias, pela força. Não podemos negar a existência do uso da força, já que as cativas eram propriedades de seus senhores e, constantemente, encontramos nos documentos pesquisados a expressão “o senhor pode tomar posse e desfrutar da dita escrava como coisa sua”. Muitos podiam agir dessa forma, alegando que os corpos de suas cativas lhes pertenciam e, assim, desfrutá-los como desejassem. Dessa forma, as mulheres cativas viviam em condições mais vulneráveis. Tal postura pode ser vista como a permanência do poder privado do senhor sobre seus escravos. Todavia, pode também ser encarada, e acreditamos nisso, como a manutenção de uma política de gênero que estabelece o poder masculino como referência dentro das relações. 

O que podemos afirmar é que Martinha e Manoel Cedraz tiveram uma relação sexual/afetiva, por um longo período, em forma de concubinato, pois permaneceram solteiros, sem a oficialização da união. O fato dele ter demorado muitos anos para oficializar a união com Martinha pode indicar que para Mané Tenda pesava o preconceito de manter uma relação com sua ex-escrava. A diferença de idade entre eles era de, aproximadamente, 21 anos, dado que, talvez, não tivesse importância para a família dele, o que acreditamos ter pesado, realmente, foi o fato da condição jurídica, social e racial de Martinha. 

A compra de Martinha foi efetivada em 1870, e o primeiro filho do casal nasceu em 16 de abril de 1874, na Fazenda Saco dos Porcos, ou seja, quatro anos após o registro da compra dela. Será que o relacionamento entre ela e Manoel Cedraz já existia antes mesmo de sua compra? Ou teve início logo depois dela? Há quanto tempo Mané Tenda conhecia Martinha e tinha se interessado em comprá-la? E, por que ele a comprou, já que havia um interesse em ter um relacionamento amoroso com ela? Será que essa afetividade foi surgindo com a convivência na Fazenda Saco dos Porcos? 

Martinha, Manoel Cedraz e seus dois filhos formavam uma família constituída por pessoas com condições jurídicas diferenciadas. Ele, um homem livre e proprietário da amásia e de seu filho Saturnino, e, também, o senhor do segundo filho da cativa, Antonio Frutuoso, que nasceu em 1874. Ele recebeu o nome de Antonio Frutuoso de Oliveira, o mesmo do bisavô paterno, o que evidencia uma escolha feita pelo pai. Poderia também sugerir uma intenção de demonstrar que ali vivia uma família autêntica, ainda que não abençoada pelos laços oficiais do matrimônio. Por outro lado, seria uma forma de inserir o filho no seio familiar, buscando, assim, conferir legitimidade à relação perante a família e a sociedade. Antonio Frutuoso apareceu no assento de batismo como liberto pela Lei nº 2.040 de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre. 

(...)

Quatro anos depois do nascimento de Antonio, em 2 de fevereiro de 1879, nasceu o segundo filho de Martinha e Mané Tenda. Ele recebeu o nome de Joviniano e foi batizado pelo Padre Marcolino, que o qualificou como de “cor fula”. Em 30 de julho de 1880, nasceu o terceiro filho do casal, chamado Belmiro, qualificado como “pardo” e filho de Martinha, liberta. Em 1882, nasceu mais um menino, Graciliano, ingênuo, filho da escrava de Manoel Cedraz, acreditamos que ela foi classificada como escrava por um equívoco do padre, pois não a encontramos mais citada na documentação como cativa desde 1879. Em 8 de maio de 1883, nasceu a primeira menina, Eufrosina. Ainda neste ano, Manoel Cedraz registrou uma escritura de perfilhação reconhecendo seus filhos naturais. O documento afirma que, "Manoel Cedraz de Oliveira Júnior reconhece a seus filhos naturais Antonio, de idade de dez anos, Jovino com cinco anos, Belmiro com quatro anos, Graciliano com dois anos e Eufrosina com três meses havidas com Martinha Maria de Jesus e Manoel Amaro de Oliveira, de maior idade, havido com Justina Maria de Jesus."

(...)

O envolvimento de Martinha com Manoel Cedraz pode não ser visto como extraordinário, porque a historiografia tem apontado diversos casos de cativas que 44 mantiveram relacionamentos sexuais/afetivos com seus senhores e destas relações tiveram filhos ilegítimos. Mas, por outro lado, no caso específico da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité, não encontramos mais nenhuma história de escrava que se tornou esposa de seu senhor ou mesmo que teve seus filhos ilegítimos reconhecidos legalmente por seu proprietário. Martinha foi uma mulher que se casou com o seu ex-senhor e teve um relacionamento duradouro. Manoel Cedraz e Martinha viveram juntos por cerca de 42 anos. 

(...)

Em 13 de julho de 1885, nasceu o último filho do casal Manoel Cedraz e Martinha. Era uma menina e a chamaram de Maria Alcina. A família estava completa, pai, mãe e filhos naturais. 

2.5 Martinha e suas escolhas 

[...] 

Partilhamos da ideia de que a relação afetiva entre Manoel Cedraz e Martinha permitiu que a cativa encontrasse meios de assegurar a ascensão social dela e de seus filhos dentro dos limites da escravidão. Dessa forma, conseguiu para si bens materiais e simbólicos que lhe colocaram em lugar de destaque em comparação com as demais escravas da região. Foi também um meio de amparar sua prole, inclusive, o filho tido antes do relacionamento com Manoel Cedraz. A compra do seu filho Saturnino por Manoel Cedraz foi incorporada pela memória dos parentes como uma “prova de amor”. Essa história foi transmitida de geração a geração, e, ainda hoje, os bisnetos recontam que ela chorou por meses até que conseguiu a bendita façanha de ter seu filho novamente em seus braços. 

(...)

Martinha esteve em uma relação de concubinato com seu senhor até 1889, cerca de 18 anos. Seus descendentes afirmam que ele a alforriou, mas, não encontramos as cartas de alforria dela, nem de seu filho Saturnino. Porém, a palavra “liberta”, ressaltada nos assentos de batismos dos filhos, indica que realmente ela alcançou sua liberdade. Os relatos de seus descendentes revelaram que o relacionamento dos dois ficou em oculto até o nascimento do terceiro filho do casal, Belmiro, em 1880, mas a presença da família dele nos batismos de seus filhos, como veremos a seguir, pode ser um indicativo de que a relação entre Manoel Cedraz e Martinha era do conhecimento de sua família e da comunidade local. A família dele, possivelmente, não via com bons olhos essa relação, assim, devem ter vivido situações de preconceito por parte de uma família formada por pessoas brancas, de posses e que estavam inseridas no grupo local privilegiado. 

(...)

Martinha viveu com Mané Tenda por muitos anos, e ela soube conquistá-lo, já que tomava conta de suas propriedades enquanto ele estava fora, trabalhando no cuidado com o gado, e é descrita pela memória dos descendentes como uma mulher diferente, inteligente, que sabia resolver os problemas do marido, no que diz respeito à administração das fazendas. 

Um dado interessante é sobre a relação de Martinha com sua família. Sabemos que no sistema escravista a separação de membros da família era uma possibilidade permanente por vendas, doações e partilhas de bens devido à morte do senhor ou senhora. Ela viveu esta realidade quando foi afastada de sua mãe e irmãos. Através das entrevistas orais, foi possível identificar os nomes dos irmãos de Martinha, sendo citados nove: Anacleto, José, Maria Cristina, Maria Aprigia, Maria, Estanislau, Firmino, Severino e Joana. Esses irmãos foram separados dela ainda quando crianças, por meio de vendas e partilhas. Mas, no período entre 1871 e 1878, ela investiu na busca de seus familiares. Para tanto, conseguiu recursos financeiros, com a venda de gêneros alimentícios que plantava nas terras de Manoel Cedraz, com o consentimento dele. Ela vendia batata, feijão e farinha de mandioca na feira local, e com o dinheiro que conseguiu juntar, comprou a liberdade de alguns dos seus irmãos, outros, ela já encontrou livres, como Estanislau e Anacleto. D. Nininha, neta de Estanislau e sobrinha-neta de Martinha, relatou que a mãe dela 

[...] falava muito de Martina, que era tia dela... Que Martina era escrava, casou com o patrão... O patrão que comprou ela, ela era muito inteligente. Ele voltou e casou com ela... Aí, ela, os irmãos dela era recolhido pelo mundo e dizia que no tempo do cativeiro vendia os jovens... Aí, ela saiu recolhendo os irmão tudo dela. 

Sobre a mãe de Martinha, o pai e seus irmãos, não encontramos mais detalhes nos documentos, pois há um número grande de “Antonia Maria de Jesus” e “Francisco” nas fontes consultadas. Esses nomes eram comuns entre as mulheres e os homens da freguesia. Mas, a entrevista do Sr. Romão, bisneto de Martinha, nos esclareceu algo sobre eles. 

"Meu avô e os irmãos dele e meu pai falavam muito da avó... Falavam muito dela... O meu pai sempre falava. Chamavam ela de Mãe Tonha. Ela ficou morando por aqui mesmo, e tinha contato com os netos e com a filha. Agora, tinha umas tias Maria Aprigia, Maria... Eram todas três Maria. Maria Aprigia, uma morava no Sucavão, e a outra era Maria Cristina. Acho que a outra era Plácida... Não lembro bem [...] meu pai falava desse negócio todo [...] Falava de Estanislau... Falava de Anacleto mesmo. Ouvi falar de Estanislau, das Marias... Ele falava essas histórias assim [...]."

A partir das entrevistas, percebemos que a memória fragmentada do Sr. Romão guardou informações que também foram repetidas por Dona Nininha. Acreditamos na existência de uma memória coletiva que foi sendo divulgada ao longo dos anos. O Sr. Romão e D. Nininha ouviram tais relatos de pessoas diferentes. Dona Nininha diz ter trabalhado na casa de Alcina, a filha mais nova de Martina, como ela a chamou durante a entrevista. As informações foram fazendo sentido, estando ligadas a uma rede de nomes encontrados nos documentos. A evidência da Mãe Tonha, que os netos tinham contato, demonstra, mais uma vez, a existência de uma família escrava que permaneceu com laços firmes por três gerações e que se estendeu no pós-abolição. Muitas famílias de escravos e libertos conseguiam permanecer estáveis por três gerações ou mais, por esforço dos próprios cativos. 

Acerca da compra dos irmãos, encontramos uma pista importante. Consta que a antiga proprietária de Martinha, Bernardina Claudina do Espírito Santo, além de vender Saturnino para Manoel Cedraz, vendeu também mais duas escravas, ambas chamadas Maria. Sobre uma delas, na escritura de compra e venda foi registrado que era natural de Santa Bárbara, mas, acerca da outra Maria, só foi destacado que tinha 14 anos e que foi comprada por um valor consideravelmente alto, 700$000 mil-réis.Este foi o valor mais próximo do preço da escrava Martinha. 

Dona Bernardina morava na Fazenda Sucavão, o mesmo endereço de uma das irmãs de Martinha, uma das três Marias. Seria mera coincidência ou esta moça foi comprada por Manoel Cedraz, em 1876, a pedido de sua companheira e mãe de seus filhos? Se nossa hipótese estiver correta, Maria teria voltado a morar perto de sua antiga proprietária, poderia ter recebido uma posse de terras para plantar e sobreviver. Mas, é apenas uma hipótese, já que a documentação escrita não oferece mais pistas nesse sentido. Não há evidência escrita da compra dos irmãos de Martinha por ela.  

Além de conquistar meios para reunir parte da sua família desintegrada pela escravidão, ela também conviveu com outros escravos na mesma propriedade em que morava, a Fazenda Saco dos Porcos. Todos os outros cativos que Mané Tenda comprou e registrou a escritura na freguesia em estudo, foram mulheres, com exceção de Saturnino. Em 1874, ele comprou outra escrava de Bernardina Claudina do Espírito Santo, seu nome era Inácia, descrita como preta, com idade de 14 anos, por 500$000. Em 1876, comprou Maria de Santa Bárbara, por 500$000 mil-réis, e a cativa Maria, que custou 700$000, comprada também em 1876. Outra escrava dele foi Marinha, solteira, mãe de dois filhos tidos quando vivia na Fazenda Saco dos Porcos. Possivelmente, tais cativas também servissem e obedecessem à Martinha, pois ela devia receber auxílio nos afazeres domésticos e no cuidado dos seus filhos. 

(...)

Nos depoimentos, percebemos que ela foi retratada como uma mulher diferente. Seria ela, como afirmou D. Nininha e o Sr. Romão, uma negra muito desenvolvida, inteligente, chegando a ser mais ativa que Manoel? Acreditamos que tal inteligência poderia estar relacionada à sua capacidade de desenvolver as atividades cotidianas ou, talvez, em resolver problemas mais facilmente. Provavelmente, era uma mulher que aconselhava Manoel 50 em tomadas de decisões, até quanto a negócios ligados a compras de terras. Ou, ela também pode ter sido o braço forte na administração das fazendas e dos negócios quando ele esteve acometido de uma moléstia que o deixou impossibilitado de trabalhar por muitos dias. Ela não sabia ler, nem escrever, assim como seu filho Saturnino. Portanto, essa inteligência seria fruto das experiências da vida. 

A carta de liberdade de Martinha não foi encontrada, mas ela deve ter sido alforriada e a carta ter se perdido ou mesmo não ter sido registrada em cartório. Casaram-se em 1889, na Igreja Matriz de Conceição do Coité, com as bênçãos do Padre Marcolino Madureira. Provavelmente, as questões sociais e familiares fizeram Manoel só se casar com ela, uma mulher negra, egressa de cativeiro, após o fim da escravidão, quando não havia mais escravos ou libertos, todos eram juridicamente livres. Ter uma esposa ex-escrava e negra poderia ser motivo para críticas da sociedade. As marcas deste passado, possivelmente, eram difíceis de serem anuladas, pois entendemos que a condição de tais sujeitos não mudou muito com a Lei Áurea. 

O futuro não veio com certas dificuldades para os filhos de Martinha. Todavia, provavelmente, enfrentaram outros entraves de ordem social. Está inserido em uma família de pessoas de posses e gozar dos privilégios que esta condição poderia proporcionar era prerrogativa para um futuro mais brando do que o esperado para filhos de outras escravas. As decisões dos pais de Antonio Frutuoso, Joviniano, Belmiro, Graciliano, Eufrosina e Alcina começaram com a escolha dos padrinhos destes últimos. Saturnino também gozou das estratégias traçadas por Martinha, pois entrou na partilha de bens do casal, herdando apenas a parte que cabia à meação dela. As trajetórias desta família e de outras constituídas por cativos serão traçadas no próximo capítulo. 

3 TRAJETÓRIAS DE ESCRAVOS E LIBERTOS: OS FILHOS DE MARTINHA

Percebemos que a formação da família cativa extensa, ou não, incorporando pessoas não aparentadas, como os padrinhos dos filhos, era uma estratégia de sobrevivência dentro do cativeiro. Os padrinhos eram os protetores espirituais dos afilhados e, para os pais, representavam uma forma de reforçar os laços de amizade e solidariedade. Por esses motivos, a escolha deles era, sem dúvidas, pensada com muito cuidado, pois passariam a fazer parte da família, mesmo que indiretamente. Além de reafirmar as alianças sociais, também firmavam as estratégias de clientelismo entre as pessoas de prestígio na sociedade.

Os filhos de Martinha foram todos batizados ainda bem pequenos, algo que a própria igreja e os pais católicos preferiam, em vista da alta taxa de mortalidade que havia entre as crianças pequenas. O filho Saturnino, fruto de um relacionamento anterior à compra de Martinha por Manoel Cedraz, foi batizado com apenas seis dias de nascido, em 25 de junho de 1864. No assento de batismo, o menino foi declarado como de cor fula, filho natural de Martinha, ambos escravos de Bernardina Claudina do Espírito Santo. Os padrinhos foram José Paulino de Oliveira e Carlota Maria. Sobre eles, não foi encontrada mais nenhuma informação. Seriam da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité ou de outra localidade? Saturnino aparece como cativo no documento.

Os filhos de Martinha com Manoel Cedraz tiveram padrinhos que foram escolhidos dentro do núcleo familiar do pai, exceto Joviniano e Eufrosina, que foram batizados por pessoas que faziam parte do mesmo grupo social de Mané Tenda, mas que não tinham um parentesco próximo com ele.

Antonio aparece no assento de batismo como liberto e de cor parda. A escolha dos padrinhos dele esteve diretamente ligada aos laços de parentesco com a família Cedraz. Tendo apenas um mês de idade, Antonio Frutuoso foi batizado por José Cedraz de Oliveira e D. Ana Josina de Jesus. Eles eram irmãos do pai do menino e, possivelmente, a estratégia foi possibilitar proteção e amparo para a criança, caso os pais faltassem algum dia. José era dono de parte da Fazenda Saco dos Porcos. Outra intenção presente na escolha feita pelos pais pode ter sido introduzir o menino no seio da família de Mané Tenda, que, na época, era de posses. Era uma maneira de reconhecer publicamente a paternidade.

Joviniano foi batizado em 3 de abril de 1879, com dois meses de idade. Declarado como “ingênuo” e de cor fula. Seus padrinhos não faziam parte da família do pai. Os escolhidos foram Raimundo Nonato de Couto e sua esposa, Justina Maria de Jesus. Raimundo Nonato era o 1º escrivão da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité. Assumiu esta função em 1864. Também era eleitor votante da dita freguesia. Seus nomes estão em diversos assentos de batismos, tanto de livres, quanto de filhos de escravos. Por exemplo, em 15 de agosto de 1878, eles batizaram o liberto João, pardo, filho do casal de escravos Hilário e Vitorina. Em 14 de outubro de 1883, eles batizaram a pequena Inocência, de cor fula, filha da liberta Esculástica. Tal escolha nos permite afirmar que, como escrivão, ele gozava de certo prestígio na comunidade.

Belmiro, o terceiro filho de Martinha com seu senhor, também foi batizado com três meses de vida, em 1º de novembro de 1880. Este filho de Martinha foi caracterizado no assento de batismo como livre e “cabra”. Seus padrinhos foram Manoel Cedraz Carneiro de Oliveira e Maria Eliza de Oliveira. O padrinho era sobrinho de Manoel Cedraz, filho de Francisco Cedraz de Oliveira Salles e Francisca Maria de Oliveira. Maria Eliza era a irmã mais nova de Manoel Cedraz e, portanto, tia de Belmiro.

Graciliano foi batizado em 19 de fevereiro de 1889. No documento consultado, ele aparece como “ingênuo”, de cor parda. Foram seus padrinhos Aristides Cedraz de Oliveira e Justina Maria de Jesus Couto, esposa do escrivão. As evidências nos levam a suspeitar que havia uma relação de amizade ou de parentesco entre as famílias de Mané Tenda e de Justina e seu esposo. Aristides Cedraz era sobrinho de Manoel. Ele era filho de José Cedraz e foi também eleitor da freguesia. Encontramos relatos de que ele foi político, concorrendo a vereador em várias eleições. Também foi coronel e major fiscal do 59º Batalhão de Artilharia de Posição do Estado Maior da Guarda Nacional. Desse modo, percebemos que ele poderia proteger e até cuidar do afilhado, caso ele viesse precisar de auxílio algum dia.

Eufrosina foi batizada em 29 de junho de 1883, com apenas um mês de vida. Foi declarado no registro de batismo, que a menina era livre e parda. Seus padrinhos foram Joaquim Cedraz de Oliveira e Romana Francisca de Jesus. Joaquim era também sobrinho de Manoel. Sobre Romana, não conseguimos nenhuma informação, só sabemos que não era sua esposa. Alcina fora batizada em 9 de agosto de 1885. Assim como Eufrosina, ela foi declarada como parda e livre. Seus padrinhos não faziam parte da família Cedraz, foram João Lopes da Silva e Maria Joaquina de Santana. João Lopes era filho do Capitão Manoel Lopes da Silva. Sua família era de posses, dona de escravos e também de terras, entre elas, a Fazenda Gangorra, Mucambo e Santa Rosa. João era eleitor votante, o que nos permite afirmar que detinha uma renda anual específica que lhe garantia o direito de exercer tal papel social e ainda sabia ler e escrever.

Percebemos que Martinha e Manoel Cedraz foram estratégicos quanto ao apadrinhamento dos filhos. Suas escolhas levaram em consideração a relação familiar e o fato de serem pessoas da mesma condição social e econômica que Cedraz, que pudessem socorrer os filhos deles em momentos de dificuldade, visando, também, firmar alianças com pessoas do mundo do pai das crianças. Mas, pode ser que as escolhas dos padrinhos tenham sido feitas apenas por Manoel Cedraz. Isso pode ser um indício do domínio dele sobre Martinha.

(...)

As cativas de Manoel Cedraz, Marinha e Maria, por exemplo, fizeram escolhas diferentes da de Martinha. Em 1879, foi batizada Marcolina, de cor fula, filha da escrava Marinha. Os padrinhos foram Antonio Severo e Paulina, ambos escravos. Marcolina, porém, faleceu em dezembro do mesmo ano. Em 1880, ela teve mais um filho, João, que foi batizado pelo mesmo casal, Antonio Severo e Paulina. Desconfiamos que eles também eram escravos de Manoel Cedraz ou que moravam próximos ao endereço da mãe dos afilhados.

Maria, por sua vez, optou por buscar laços de apadrinhamento em dois universos diferentes, no mundo dos livres e também no mundo dos cativos. Em maio de 1880, seu filho Júlio foi batizado por Manoel Amaro de Oliveira e Maria Eusébia de Oliveira. Manoel Amaro era o filho mais velho de Manoel Cedraz, portanto, livre ou liberto. Maria Eusébia, pelo sobrenome, também tinha parentesco com o proprietário da cativa. Em 24 de outubro de 1884, nasceu mais um filho de Maria, o menino Firmino, que foi batizado com apenas um mês de vida. Seus padrinhos foram Honorato e Luiza, ambos escravos. Assim, Maria criou laços de apadrinhamento tanto entre os livres, quanto entre os cativos.

(...)

A aceitação dos parentes de Manoel Cedraz em batizar os filhos de uma escrava não significa que havia reconhecimento da família quanto ao relacionamento do casal. A relação entre Martinha e a família do pai de sua prole podia ser tensa. Talvez, parte da família “aceitava”, ou melhor, não interferia na vida deles, e a outra parte, via com maus olhos. As situações de preconceito por eles vividas podem ser sinalizadas pela ausência de apadrinhamento de seus parentes. O nome de Manoel Cedraz não aparece nos assentos de batismos, assim, concluímos que, pelo menos na freguesia em que vivia, ele não batizou nenhuma criança.

Mané Tenda é retratado, através das memórias de seus descendentes, como um homem muito “grosso”, de poucas amizades. Não encontramos na documentação pesquisada nenhuma evidência de Manoel Cedraz ter batizado alguma criança, nem mesmo sobrinhos ou parentes mais distantes. Teria ele entrado num ostracismo, devido à sua relação com Martinha? Mas, com relação aos batismos de crianças escravas, será que foi uma decisão dele não realizar nenhum? Ou, por seu comportamento áspero, será que ele não era requisitado para apadrinhar nenhuma criança, escrava ou livre?

Com base na memória local, são contadas situações de humilhação que o casal foi vítima, especialmente, da parte do pai de Mané Tenda e de alguns dos irmãos. Conta-se que o pai de Manoel Cedraz lhe negava a bênção e virava as costas para ele. Os irmãos evitavam passar pelo mesmo caminho que ele, quando se encontravam nas estradas montados a cavalo. Um episódio narrado por Romão, trazido a seguir, nos mostra como a sociedade livre enxergava o relacionamento entre Manoel e Martinha:

"Até contam aí que alguém mandou entregar, foi Zé Carijé, [...] mandou lá uma carta pra só entregar a Mané Tenda ou então se não encontrasse de tudo, encontrasse a mulher, para entregar a mulher dele. Aí, ela (Martinha) apareceu e ele não quis entregar por causa da cor dela, ele tinha saído... Aí, depois que confirmaram que era a mulher dele mesmo... por conta da cor mesmo."

Manoel pagou um preço por viver esse relacionamento. Mas, por outro lado, conseguiu viver uma história de companheirismo com a mulher que escolheu para partilhar a vida. Esta união foi a única que levou Mané Tenda a casar-se oficialmente. No período em que viveram juntos, tomaram decisões referentes ao destino dos filhos em comum e, com certeza, do filho dela, Saturnino. Ela foi uma ponte para as conquistas necessárias para o futuro de sua prole. A trajetória dela se diferencia da de outras cativas da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité em alguns aspectos, no entanto, isso não lhe impediu de viver e compartilhar as angústias do cativeiro.

Martinha também batizou crianças, principalmente, cativas, o que sugere que tinha prestígio, sobretudo, na comunidade escrava da região. Encontramos seu nome entre os assentos de batismos como madrinha do ingênuo Faustino, filho da escrava Margarida, do domínio de Francisco Gonçalves de Oliveira. Ela também batizou, em 1873, Luiz, liberto, filho da escrava Custódia. Mãe e filho viviam na Fazenda Algodões, uma das fazendas de Manoel Cedraz. Posteriormente, em 1876, batizou Catarina, filha natural da escrava Rita, moradora da Fazenda Caldeirão de Pedra. A ligação de Martinha com a mãe de Catarina deuse devido ao fato de parte das terras desta fazenda ter pertencido a Manoel Cedraz. Em 29 de outubro de 1892, Martinha e seu filho Antonio Frutuoso batizaram Bernarda, parda, com dois meses de idade. O nome do pai da menina era Anacleto Bispo de Oliveira e da mãe Cristina Maria de Jesus.

Seria este Anacleto Bispo de Oliveira o irmão de Martinha que havia sido reencontrado por ela entre 1871 e 1878? Identificamos um Anacleto Bispo dos Santos, casado com uma Cristina Maria de Jesus, que batizou uma filha de nome Alexandrina, em 1890. É possível que se trate do mesmo Anacleto, porém, com um dos sobrenomes diferente. Era comum a mesma pessoa aparecer com sobrenomes diversos na documentação do século XIX, dado que foi observado nesta pesquisa.

Apadrinhar crianças era uma forma de reconhecimento para com as pessoas escolhidas. A condição de vida de Martinha conferia-lhe prestígio frente a muitos cativos e libertos, o que pode evidenciar sua importância no seio das famílias escravas e libertas. A sua ascensão podia significar amparo para a vida de seus afilhados, caso dependessem dela em algum momento. Ela era esposa de um homem com riqueza e a família ainda guarda na memória o quanto ela era uma mulher “bondosa”, que gostava de ajudar as pessoas. Seria, desta forma, uma rede de solidariedade que unia nossa personagem aos seus irmãos de cor e de cativeiro. Ela não foi caso único na historiografia brasileira em que uma negra, ex-escrava apadrinhou crianças. Sobre isto, João Reis nos apresentou o africano Domingos Sodré, que circulou entre o mundo dos cativos e dos livres, ascendeu socialmente e foi padrinho de muitas crianças cativas e livres, inclusive, brancas.

Martinha teve sete filhos, uma média comum entre as famílias escravas encontradas na dita freguesia.

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Por essa tentativa de distanciar-se do passado da escravidão, muitos cativos não adotaram os sobrenomes ou outros dados que os ligavam aos seus ex-senhores. Martinha foi um caso diferenciado, assim como muitas mulheres libertas e livres, ela acabou adotando os sobrenomes “Maria de Jesus”. Porém, é perceptível que os sobrenomes eram constantemente alterados nas documentações.

Ela apareceu com o nome de liberta, Martinha Maria de Jesus, pela primeira vez, em 1885, quando batizou o seu quarto filho. Portanto, já estava na condição de liberta. Anterior a esta data, aparecia sempre como escrava de seu proprietário/amásio e, simplesmente, como Martinha. Em 1889, com o casamento, permaneceu com o mesmo sobrenome. Em 1907, seu nome apareceu como Martinha Cedraz, incorporando o sobrenome de seu esposo. Entrementes, no recenseamento de 1920, seu nome apareceu entre os proprietários, como Martinha Maria de Oliveira. As alterações nos nomes demonstram que não havia regras específicas quanto à adoção de sobrenomes. Isto poderia ser feito por parte dos escrivães que registravam de qualquer forma, fazendo referência a um ou outro sobrenome quando desejavam, ou devido às diferentes escolhas dos sujeitos oriundos da servidão. No caso de Martinha, a mudança do sobrenome ao longo do tempo parece corresponder aos diversos momentos que ela viveu. Primeiro, como cativa e, depois da abolição, como esposa, aí sim, incorporando-se ou sendo reconhecida como uma Cedraz.

O filho de Martinha, Saturnino, adotou um sobrenome diferente tanto do de sua mãe, quanto do seu padrasto. Seu nome ficou como Saturnino José Cordeiro. Não descobrimos o motivo de tal escolha. Seria este o sobrenome de seu pai? Por que ele não adotou o sobrenome Cedraz? O Mané Tenda aceitaria emprestar seu sobrenome a um filho que não era seu e que, talvez, tivesse a pele mais escura do que a dos irmãos?

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3.3 Caminhos trilhados por Saturnino 

Saturnino, como outras crianças escravas, viveu os anos iniciais de sua vida sendo propriedade de outrem. Ao ser comprado por Manoel Cedraz, passou a morar com ele e Martinha na Fazenda Saco dos Porcos, e, posteriormente, na Fazenda Urussú. Como não encontramos a carta de liberdade dele, entendemos que pode ter sido libertado verbalmente ou mesmo que o documento tenha se perdido e não foi registrado em cartório. 

A Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité contava com um número considerável de libertos e de seus descendentes. O censo de 1872 apontou um número de 1.469 pretos e 1.271 pardos vivendo nessa freguesia. Os brancos eram apenas 875 e 310 caboclos, estes últimos, provavelmente, frutos da miscigenação com indígenas. 

A freguesia era pequena e, possivelmente, os ex-escravos vivessem do trabalho na lavoura, não havia, portanto, necessidade de se deslocarem com frequência para outras freguesias distantes. Assim, talvez, não existissem grandes problemas com a ausência da carta de alforria. Todavia, se precisassem se ausentar da freguesia, é provável que tivessem a necessidade de levar documento comprovando a condição de libertos. Sabemos que a ausência deste documento gerava uma série de problemas para um liberto que vivesse em cidades como Salvador e Rio de Janeiro. Muitos cativos foram até presos, por não apresentarem a prova de liberdade às autoridades.

A carta de alforria era o ato jurídico pelo qual o senhor passava para seu escravo o título que requeria sobre ele. Tal documento era exigido, geralmente, a fim de comprovar o direito do ex-escravo de ter uma mobilidade espacial sem a presença de um senhor e não ser confundido com um escravo fugido. 

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Diferente de Saturnino e sua mãe, alguns cativos fizeram questão, ou os seus senhores, de registrar em cartório suas cartas de liberdade. Outras liberdades, no entanto, foram evidenciadas em meio a outros documentos, como procurações, estando os cativos envolvidos em processos de liberdade mediados pelo Fundo de Emancipação. Dentre estes, encontramos menção à escrava Marinha, do domínio de Manoel Cedraz, e que convivia com Martinha e seus filhos. Seus filhos devem mesmo ter convivido com os filhos de Manoel Cedraz e Martinha, inclusive, com Saturnino. Ela foi liberta em 1884. 

Encontramos, também, referências ao processo de liberdade nos assentos de batismos que fazem alusão à condição jurídica dos escravos e de alguns libertos. Tal observação justifica a nossa afirmação de que muitas alforrias se deram em caráter verbal, as cartas não foram devidamente registradas em cartório. A ausência dos registros pode ter ocorrido, também, por conta dos custos dos registros serem de responsabilidade dos cativos.60 Percebemos que havia um espaço entre a escrita das cartas e o registro delas. Algumas têm o intervalo de cerca de 2 anos. Esta pode ter sido a situação de Saturnino, talvez, tenha recebido a carta, mas não chegou a registrá-la. 

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Voltemos a nossa atenção a Saturnino, que foi apelidado de Tunilo, e era assim que a família o tratava. Ele casou-se em 1891, com Hermínia Maria de Jesus, na Igreja Matriz de Riachão do Jacuípe, terra de origem de sua noiva. Em 1892, nasceu seu primeiro filho, João Miguel da Conceição. O menino era pardo e foi batizado por seu tio Antonio Frutuoso de Oliveira. Um ano depois, nasceu Antonio, em 26 de novembro de 1893, e, em 1895, nasceu Maria. Em seguida, ocorreu o nascimento de Hercília Maria de Jesus, em 1896.

É provável que ele trabalhasse na lavoura ou mesmo em outras atividades ligadas às propriedades rurais de seu padrasto, juntamente com seus irmãos. Seu endereço foi a Fazenda Rufino, próxima às propriedades de Manoel Cedraz. Do fruto dessas terras, ele criou os filhos e viu-os constituir família. Saturnino não estudou nem se alfabetizou de outra forma, ele não sabia assinar o próprio nome.

Na partilha de bens que Manoel Cedraz e Martinha Maria de Jesus fizeram, em 1912, encontramos o nome de Saturnino Cordeiro da Conceição. Ele teve direito a uma parte do terreno da Fazenda Algodões, “uma parte de terras na Fazenda Urussú neste termo e uma casa térrea na Praça da Rua da Freguesia de Santa Bárbara, tudo pelo preço e quantia de 250$000 70 réis”, recebendo metade da parte que coube aos seus irmãos, o que sugere que ele teve direito, apenas, ao que pertencia a sua mãe. 

Não conseguimos informações sobre as razões que levaram a esta partilha de bens em 1912, pois sabemos que esse tipo de partilha acontece, geralmente, no momento de morte de um dos cônjuges. Manoel Cedraz faleceu em 1916, cerca de quatro anos após esta divisão do patrimônio. Os descendentes, ao se referirem a isso, falam sobre o receio dele em falecer e alguém tomar conta de suas propriedades e não reconhecer o direito de seus filhos. Haveria desentendimentos na família de Mané Tenda por heranças? Ou ele e Martinha resolveram dividir a herança por ele já está idoso e não conseguir cuidar mais de seus negócios? 

A parte da roça que Saturnino recebeu passou a chamar-se Fazenda Retirada, próxima à Fazenda Rio das Pedras, servindo, mais tarde, para ele e sua família trabalhar em atividades de plantio, assim como muitos dos descendentes de escravos. Ele também teve seu futuro marcado pela atividade da lavoura, plantava milho, feijão, batata e aipim. Viveu todo o tempo nas terras que recebeu na partilha de bens de sua mãe, Martinha. Com sua morte, essas terras passaram para os seus nove filhos, cabendo a cada um sessenta e poucas tarefas de terra. 

Ao vasculhar a documentação trabalhada, encontramos muitas dificuldades em cruzar os caminhos de egressos da escravidão após 1888. Entendemos que a maior parte deles pode ter permanecido em comunidades rurais para tentar a vida. Entre eles, esteve a filha de Estanislau Xavier de Lima, irmão de Martinha e pai de Ana Maria de Jesus. Ela casou-se com Quintino Maia de Oliveira, em 25 de maio de 1910. O casal foi morar nas terras da Fazenda Maracujá, para cuidar da roça de Estanislau. Infelizmente, não encontramos a escritura de compra dessa fazenda, porque foi arrancada do livro de notas. Mas, a memória de D. Nininha se reportou a este fato: 

"Eu nasci aqui e tô viva até hoje aqui. Sou filha daqui do Maracujá mesmo. Agora meus pais, meu pai é de uma família do Lameiro do Juazeirinho e minha mãe é da Fazenda Cansanção do Juazeirinho pra cá. Eles casaram e vieram morar aqui. Essa fazenda aqui era de meu avô por parte de mãe. O nome desse meu avô era Estanislau... Esse era o irmão de Martina." 

O interessante é que ela também nos deu informações sobre dois outros donos da fazenda que eram negros e descendentes de escravos. Chamavam-se Calixto de Souza e José de Souza. Quando o pai de dona Nininha foi morar nas terras do Maracujá, eram esses dois e mais um senhor chamado Severino que habitavam aquelas terras. Eles aparecem no recenseamento de 1920 como proprietários da fazenda citada, mas, sobre Estanislau, não encontramos referência.

Um dado significativo é que as terras da Fazenda Urussú ficavam exatamente nos limites da região que atualmente forma a comunidade de Juazeirinho. É possível que as terras do Maracujá tenham sido doadas a Estanislau por Martinha e seu esposo, a fim de que ele pudesse sobreviver e cuidar de sua família com o trabalho da agricultura. As terras foram motivo de disputa mais tarde, por volta de 1935. Dona Nininha não soube nos falar quais foram as pessoas envolvidas neste episódio, mas lembrou que eram brancos querendo tomar as terras de lavradores negros. A disputa acabou com a intervenção de um coronel lembrado como Zezé, que “tomou a frente e acabou com aquele negócio”. O coronel resolveu a demanda colocando-se a favor da população negra que vivia ali. 

A posse de terras em mãos de libertos foi, em alguns lugares, “precária”, pois muitas doações não eram oficializadas e havia sempre a ameaça de desapropriação por parte de descendentes dos doadores. Outra importante questão é que a doação de terras por senhores a seus libertos era um meio de manter seus ex-cativos “como agregados, dependentes de seus ex-senhores e patronos”.

Para Saturnino, a parte que lhe coube na partilha de bens de sua mãe não foi suficiente para que aumentasse suas posses. Ele permaneceu com as terras que recebeu, pois, talvez, se aventurar em vendê-las para comprar outras fosse um risco para um homem que viveu como escravo, e que, possivelmente, viu muitos dos seus semelhantes sofrerem as precárias condições de sobrevivência e preconceito. O Sr. Romão nos falou que Saturnino tinha contato com os irmãos e sobrinhos, que todos lembram dele como o “velho Tunilo, ele plantava feijão, milho, mandioca pra fazer farinha, aipim... Já morreu de idade, trabalhou até bem velho na roça”.

3.4 Filhos, filhas e netos de Martinha

O destino dos filhos de Martinha e Manoel Cedraz, provavelmente, deve ter sido distinto do enfrentado pelos demais cativos e libertos que viveram na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité no final do século XIX e início do século XX. Suas vidas foram marcadas, em parte, pelas decisões de seus pais, e, em outra, por suas próprias. Seguiram os caminhos trilhados pelo pai, como o trabalho com a lavoura e a criação de gado. Puderam gozar do prestígio de descenderem de um pai conhecido e com condição financeira suficiente para dar-lhes um futuro com certa segurança. Mas, mesmo assim, enfrentaram os desafios de terem nascido de ventre escravo e de serem de cor. 

A trajetória deles começou com uma decisão, deveriam estudar e se preparar nos moldes de uma sociedade que buscava para seus cargos políticos e de poder homens que fossem letrados. Portanto, poder estudar e instruir-se era um caminho para contrabalançar o peso da cor. Por isso, foram mandados para estudar na Freguesia de Santa Bárbara. Consta que a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité estava sem escola para crianças do primário em 1892.

Os filhos do sexo masculino tiveram participação na vida política e social da Vila de Conceição do Coité, sendo eleitores votantes. Encontramos os nomes de Antonio Frutuoso, Belmiro Cedraz e Joviniano Cedraz em listas de eleitores da vila e em ofícios de petições ligados a questões de direito à cidadania por parte dos moradores da vila. Em 1909, registraram em cartório um termo de protesto contra o descaso com que vinham tratando as duas seções que havia na vila. Aparecem no documento como eleitores e presidentes das seções em que votavam.

Seus nomes sempre aparecem juntos aos nomes dos demais Cedraz envolvidos na vida política local. Deles, destacamos o primo José Cedraz Júnior, que também era eleitor votante. Outro parente foi Aristides Cedraz, que era major da vila. Tal constatação evidencia que mesmo sendo descendentes de uma escrava e tendo a cor da pele escura, eram pardos e fulas, eles puderam conquistar espaço na vida política e social da comunidade e estiveram em condições semelhantes a de seus parentes de pele branca.

Dos filhos do casal, um recebeu patente da Guarda Nacional: Belmiro Cedraz de Oliveira. Ele foi capitão da 3ª Bateria do Batalhão de Artilharia de Posição do Estado Maior da Guarda Nacional. Junto com Belmiro estava o primo Aristides Cedraz, que era o major, e Antonio Cedraz, que era o capitão da 2ª Bateria do Regimento de Artilharia de Companhia.

A Guarda Nacional foi fundada em 1838, uma força miliciana controlada, em grande parte, pelos proprietários de terras. O objetivo dela era manter a ordem interna. Estava subordinada ao juiz de paz, aos juízes criminais, ao presidente da província e ao ministro da justiça. Era composta por brasileiros que tivessem renda para serem eleitores e com idade entre 21 a 60 anos. É provável que Belmiro se enquadrasse neste grupo privilegiado de homens.

No que tange ao acesso a propriedades, na partilha de bens registrada em 1912, cada um de seus filhos recebeu partes de terras no valor de 500$000 mil-réis. A Antonio Frutuoso coube a quinta parte da Fazenda Saco dos Porcos; a quinta parte dos terrenos comprados por seu pai; a quinta parte dos terrenos da herança do falecido Manoel Cedraz Sales, seu avô; uma parte da Fazenda Algodões; a quinta parte da Fazenda Alto; a quinta parte da Fazenda Assentada; fazendas no município de Riachão do Jacuípe; a quinta parte da Fazenda Boqueirão, incluindo a Fazenda Caldeirões e o Caldeirão do Pai Tomáz; a quinta parte da Fazenda Macambira; a quinta parte da Fazenda Sítio do Meio, englobando a casa da fazenda, com as benfeitorias, sendo que a casa foi apresentada como coberta com telhas e compartimentada, mas bem desgastada.

Belmiro Cedraz de Oliveira também herdou bens no valor de 500$000 mil-réis, a saber: a quinta parte da Fazenda Saco dos Porcos; a quinta parte da Fazenda Assentada; a quinta parte da Fazenda Alto; da Fazenda Trancada, recebeu a quinta parte e mais uma parte do terreno dividido na mesma fazenda com suas benfeitorias, dois tanques; a quinta parte das fazendas Sítio do Meio e Boqueirão, ambas nas terras de Riachão do Jacuípe; ainda recebeu uma parte de um sítio numa localidade chamada Casa Nova, com os currais, tanques e cercas; e a quinta parte da Fazenda Macambira.

A Joviniano Cedraz de Oliveira coube a quinta parte da Fazenda Saco dos Porcos, com o tanque da Caiçara; a quinta parte da Fazenda Assentada; terça parte da Fazenda Urussú; uma parte da Fazenda Algodões; quinta parte da Fazenda Alto, com as benfeitorias, o tanque da Jiboia; a quarta parte da fazenda Boqueirão e a casa, bem como as benfeitorias, tanques e cacimbas; acrescentou-se a isso o Caldeirão de Marcos Ferreira e a Carnaúba e ainda a quinta parte das fazendas Sítio do Meio e Macambira.

Em 1913, Antonio Frutuoso vendeu uma parte da Fazenda Trancada, que recebeu de seus pais, a José Inácio da Sena, por 200$000 mil-réis. Em 8 de agosto de 1913, Belmiro comprou um quinhão do tanque da Fazenda Poço de Cima, no termo de Riachão do Jacuípe, por 113$000 mil-réis. Ainda neste mesmo ano, Antonio Frutuoso vendeu duas posses de terras da Fazenda Alto, na Vila de Conceição do Coité, a seu irmão Belmiro, por 45$000 milréis. Tal parte de terra foi recebida por Antonio na partilha de bens feita em 1912 pelos seus pais.

Essa divisão oficial, feita por Manoel Cedraz e Martinha, pode ter sido repactuada entre seus filhos, destinando-se a cada um deles propriedades inteiras. A divisão entre muitos donos depreciava as terras e era comum que a partilha fosse revista, não seguindo a divisão oficial. No recenseamento de 1920, encontramos na relação dos proprietários os nomes dos filhos do casal supracitado. Saturnino Cordeiro da Conceição apareceu ligado, apenas, à Fazenda Retirada; Antonio Frutuoso, como dono da Fazenda Boa Hora; Joviniano Cedraz, como proprietário da Fazenda Caiçara; Belmiro, como único dono da Fazenda Trancada. Augusto Carlos dos Anjos, esposo de Maria Alcina, apareceu como dono da Fazenda Guanabara.

Além das atividades da lavoura, é bem provável que eles também fossem criadores de gado. Percebemos, através das características das fazendas doadas, que em quase todas havia currais, o que pode indicar a existência de gado ou de cabras e ovelhas nessas propriedades.

Sobre Graciliano, seu nome desapareceu dos documentos e não consta na partilha dos bens. Ele faleceu com 16 ou 17 anos, provavelmente, no ano de 1899. O livro de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité que contempla esse período até 1920 não foi encontrado. Recorremos à memória de Romão para compensar o silêncio da documentação escrita. Ele ouviu de seu pai que Martinha e Manoel Cedraz "tiveram um filho que morreu moderno, chamava Graciliano. Ele morreu com uns 17 anos. Dizia meu pai que ele era muito trabalhador, gostava muito de trabalhar, e a velha naquele tempo fazia a ‘de cuada’, era uma espécie de uma solda. Cortava a madeira, queimava e botava água e aquilo ia filtrando e daquilo fazia um sabão e outras coisas, tudo era difícil naquele tempo. E ele trabalhando ali com o machado cortando, levou um golpe no pé. Naquele tempo era tudo difícil, acabou dando o tétano. A gente calcula que foi isso. Meu pai me contava que teve esse Graciliano e que morreu de sucesso, naquele tempo acidente era chamado de sucesso [...]."

Graciliano morreu ainda jovem, sem ter casado e constituído família. A família foi, assim, marcada por um golpe do destino. No ano de 1899, possível data da morte de Graciliano, a Bahia estava ainda passando por uma seca prolongada, que já vinha atingindo muitas vilas desde 1897. As consequências das secas eram a morte de muitos animais, a falta de água para o consumo humano e animal, além de epidemias. “Do sertão baiano chegam muitas notícias de morte causadas pela seca e pela fome, além de graves moléstias. As localidades mais atingidas são Jacobina, Monte Alegre, Gavião, Valente, Coité, Bonfim e seus arredores [...]”.

Com relação à vida familiar dos filhos de Martinha, os três se casaram. Antonio Frutuoso se casou com Alexandrina da Silva Carneiro, natural da Freguesia de São José das Itapororocas. Teriam se conhecido em Santa Bárbara, quando Antonio estudava lá? Pela proximidade que há entre as duas localidades, é bem provável. Não sabemos se ela era branca ou de cor, pois na certidão de casamento só apareceu o nome da mãe dela, Afra da Silva Carneiro. Alexandrina também era filha natural. Encontramos referência ao batismo de outra filha de Afra, irmã da esposa de Antonio. Consta que ela também era filha natural e considerada parda. Sua mãe, possivelmente, era solteira.

Belmiro casou-se em 18 de junho de 1907, com uma prima, chamada Ubaldina Cedraz de Oliveira. Ela era filha do Major Aristides Cedraz de Oliveira e Antonia Leopoldina. Ele era proprietário de terras, político e figura com grande prestígio na vila do Coité. Encontramos seu nome em vários assentos de batismos como padrinho de crianças declaradas brancas e ainda como testemunha de muitas negociações de compra e venda de propriedades rurais. Belmiro era um mulato e optou por uma companheira de pele clara, a julgar pelas fotografias.



O registro do casamento de Joviniano não foi encontrado na documentação de Coité, presumivelmente, ele casou em outra vila ou não oficializou a união, pelo menos, até 1912, por coincidência, o mesmo ano da partilha de bens feita por Manoel Cedraz e Martinha Maria de Jesus. Naquele ano, precisamente aos dez dias do mês de outubro, Joviniano declarou, através de uma escritura de reconhecimento e perfilhação, a existência de seus quatro filhos naturais, tidos com D. Laurinda Bento de Jesus. No documento, ele afirmou “que [era] solteiro, e maior de vinte um anos de idade”, e informou os nomes dos seus filhos: José Cedraz da Silva, com onze anos de idade; Carlos Cedraz da Silva, com nove anos de idade; Nicanor Cedraz da Silva, com sete anos de idade; e Arnaldo, com quatro anos de idade. É importante considerar que nos sobrenomes dos filhos de Martinha foram conservados o Cedraz e Oliveira, sobrenomes dos parentes paternos. O sobrenome Jesus, de Martinha, desapareceu.

A atitude de Joviniano de reconhecer os filhos teria alguma relação com a partilha de bens feita por Manoel Cedraz e Martinha? Seria uma forma de garantir o direito dos filhos sobre os bens que estava recebendo? Em 1883, Manoel Cedraz legitimou os filhos, logo depois da morte de sua mãe, D. Xista. Após a morte dela, Mané Tenda e seus irmãos solicitaram a divisão dos bens. As coincidências são visíveis.

Filhos e netos de Martinha

Saturnino Almeida da Conceição e Hermínia Maria de Jesus: João Miguel da Conceição, João Paulo, Antonio Saturnino Filho, Lázaro, Maria

Antonio Frutuoso de Oliveira e Alexandrina da Silva Carneiro:  Oscar, Candido, Claudemiro, Alberto, João, Antonio, Santa, Iazinha, Zita, Amanda, Milu

Joviniano Cedraz de Oliveira e Laurinda Maia: José, Carlos, Nicanor, Arnaldo, Floriano, Joviniano, Zinho

Belmiro Cedraz de Oliveira e Ubaldina Cedraz de Oliveira: Esmeraldo, Belmiro, Florisvaldo, Ubaldino, Manoel, Dorivaldo, Flora, Teobalda, Lourdes, Leonor, Margarida

Graciliano: -

Eufrosina: Rita

Maria Alcina e Augusto Carlos de Oliveira: Abdon, Valdemar, Francisco, Eustórgio, Nozinha, Zorilda, Alcina Filha, Claudionor


O sobrenome Cedraz de Oliveira foi adotado por alguns dos netos de Martinha, principalmente, os netos da parte de seus filhos. Era comum, naquela época, que os sobrenomes dados aos filhos viessem da linhagem masculina. Às vezes, também, traziam os sobrenomes do pai e da mãe. Ter o sobrenome Cedraz era uma forma de ser reconhecido na sociedade em que viviam, principalmente, para os filhos e netos de Martinha, que tinham a cor da pele parda ou mulata. O sobrenome Jesus desapareceu ou foi abandonado no batismo dos filhos. 

Com relação às formas de igualdade de direitos e oportunidades, seus pais trabalharam no sentido de que eles dispusessem de meios suficientes para viver em pé de igualdade com os demais da família paterna. Para tanto, ofereceram-lhes estudo e propriedades rurais. Segundo o Sr. Romão, não houve diferenças por eles serem os únicos “mais escuros” da família, pois “viveram em pé de igualdade com os demais da família Cedraz. Tanto os filhos de Martinha, como seus descendentes tiveram as mesmas oportunidades”. Afirmação passível de desconfianças, pois não acreditamos que as coisas tenham ocorrido de forma tão tranquila, sem nenhum conflito. 

Entre os filhos, Antonio foi o que menos estudou. Ele gostava do trabalho na roça. Seus filhos também estudaram pouco, e, por isso, constituíram a parte da família “com menos dinheiro”, mas ainda conseguiram “viver bem”. Tinham recursos suficientes para sobreviver com o necessário para a época. Os filhos dos demais estudaram em outras cidades e alguns ingressaram na vida política. 

Não temos a pretensão de apostar e reforçar esse discurso de que era tudo bem, que a relação de Manoel Cedraz e Martinha, e mesmo de seus filhos, existiu sem conflitos, pois acreditamos que isso era impossível dentro de uma sociedade em que os brancos detinham o poder e se consideravam superiores. Seus filhos também devem ter sentido na pele o preconceito de serem os “de cor” numa família de pele mais clara. Seguramente, viveram situações constrangedoras por disputarem espaço em lugares sociais destinados a uma elite branca e por serem frutos da relação entre um branco com uma negra e, ainda por cima, ex-escrava. 

Tais vivências ficaram guardadas na memória daqueles que viveram esse drama. Os filhos de nossa protagonista, no entanto, passaram para seus filhos e netos as situações de preconceito que a mãe deles viveu por parte da família de Mané Tenda. Nem todos narram momentos de sofrimento vividos por Martinha, e outros chegam a afirmar que todos a tratavam bem, talvez, na tentativa de amenizar as marcas de um passado ligado à escravidão, mediante uma resistência em trazer à tona situações que geraram sofrimento e vergonha num passado ligado à servidão. Todavia, é importante considerar que é impossível apagar o passado, de alguma forma, ele emerge, principalmente no caso de Martinha, que a memória local demonstra ter conhecimento de sua origem e trajetória. 

Assim como os filhos, as filhas de Martinha também frequentaram escola para dominar a leitura e a escrita. Elas estudaram na Vila de Santa Bárbara, e, como muitas moças daquela época, devem ter sido preparadas para o casamento, cuidado com o lar e os filhos. Eufrosina e Alcina tiveram as mesmas oportunidades que seus irmãos, porém, na prática, eram representadas por homens. 

(...)

Alcina e Eufrosina foram educadas como mulheres brancas e ainda receberam propriedades rurais na partilha de bens de 1912 feita por seus pais. Elas receberam partes de nove fazendas, já citadas na descrição dos irmãos, no valor de 500$000 mil-réis. Mas, quem recebeu as terras de Alcina foi seu esposo, Augusto Carlos de Oliveira, declarado como lavrador. Eles se casaram em 21 de fevereiro de 1906, ela contava com 21 anos de idade, portanto, não se casou cedo para os padrões da época. Seu nome aparece na certidão de casamento como Alcina Anacleta Cedraz.Teria sido uma homenagem ao irmão de Martinha, Anacleto? Passaram a morar nas terras da Fazenda Urussú, o que nos leva a afirmar que residia perto dos pais, assim como os demais irmãos. Como podemos ver na Tabela 2, eles tiveram oito filhos, Abdon, Valdemar, Francisco, Eustórgio, Nozinha, Zorilda, Alcina Filha e Claudionor Cedraz de Oliveira. 

A vida de Eufrosina nos reservou algumas surpresas. Ela optou por não constituir família ou mesmo não teve oportunidade de casar-se, permaneceu solteira por toda a sua vida. E, assim, não teve filhos para, mais tarde, cuidar dela ou herdar seus bens. Percebemos que ela recebeu nove posses de terras das fazendas de seus pais, também na partilha de bens, mas, ela optou por não vendê-las nem comprar outras propriedades rurais. Foi a filha que mais conviveu com os pais, pois morava com eles na Fazenda Urussú. Todavia, uma atitude tomada por ela em benefício de um primo, Aristides Cedraz, mudou consideravelmente os rumos de sua vida.

Eufrosina tinha fortes laços com a família do Major Aristides Cedraz de Oliveira. Ele vivia em sua Fazenda Rio das Pedras, com sua esposa, Antonia Leopoldina. Seus filhos foram Aloísio, Ubaldina, Hailda, Otília, Hercília, Manoel e Hidelbrando. Ela tinha grande consideração pela família do major e por ele. A partir da convivência com a família do major, teve contato com dois médicos, o Dr. Nery, casado com Otília, e o Dr. Mota, casado com Hailda. Eles chegaram à Vila de Conceição do Coité num período de surto de febre amarela. Teriam vindo da capital e se hospedado na fazenda do major, assim, conheceram e se casaram com suas duas filhas. Eufrosina aproveitou a oportunidade e aprendeu a fazer análises biológicas e trabalhava como enfermeira. Fazia exames de fezes e urina, atividade da qual tirava seu sustento. Tornou-se uma mulher independente numa sociedade da primeira metade do século XX, em que poucas mulheres brancas e de posses se lançavam no mundo do trabalho, e, quando faziam isso, dedicavam-se ao magistério. 

Eufrosina doou todos os seus bens ao primo Aristides Cedraz e a dois dos filhos dele, através de uma escritura de testamento, no ano de 1914. No documento, ela declarou ser [...] filha legitimada de Manoel Cedraz de Oliveira e Martinha Maria de Jesus, natural, moradora neste termo, ser solteira, não ter filho legítimo nem legitimado, que achando-se de perfeita saúde, segura de suas faculdades mentais que deliberou fazer seu testamento a disposição de sua última vontade, o que de fato a faz pelo presente instrumento. Declara que distituiu por seu único e universal herdeiro o seu Primo Major Aristides Cedraz de Oliveira e por morte dele passarão todos os seus bens aos seus filhos, D. Ailda Cedraz da Silva e Idelbrando Cedraz da Silva. 

Quais motivos teriam levado Eufrosina a deixar todos os seus bens para um primo e filhos dele, quando poderia fazer isso para seus irmãos ou mesmo sobrinhos? Sobre os motivos que a levou a tomar tal decisão, ela declarou que “[fez] o [...] ato muito de sua livre vontade e em atenção aos cuidados e desvelo que no decurso de doze anos lhe [...] [dispensou] seu dito primo Aristides Cedraz de Oliveira e sua família [...]”.

O que pode ter motivado Eufrosina a tomar tal decisão foram os laços de amizade e gratidão que ela tinha pelo primo e a família dele. Foi na Fazenda Rio das Pedras que ela aprendeu a trabalhar como parteira e a fazer análises biológicas, ofícios desempenhados por ela por muitos anos. 

Ao que parece, Aristides passou a administrar e a tomar posse das propriedades de Eufrosina logo após o registro do testamento. Mais tarde, ela tomou uma criança para criar e sustentava-a com o dinheiro que recebia pelo seu trabalho como enfermeira. A criança chamava-se Rita. Nasceu em 1937, ou seja, 23 anos depois dela ter feito o testamento e ter passado todos os seus bens, quando de sua morte, para Aristides Cedraz e seus filhos. Ela cuidou sozinha de Rita e investiu nos estudos dela, colocando-a para estudar numa escola de freiras em Salvador.

Já Alcina, teria cuidado dos bens que recebeu dos pais com o marido e viveu numa condição boa até sua morte. Eufrosina faleceu pobre, vivia com muita dificuldade, precisando da ajuda dos parentes e amigos. Morreu com 101 anos, sob os cuidados de Rita e dos netos. Como nos disse o Sr. Romão, “ela não tinha mais dinheiro, deu tudo ao Aristides. Quando morreu, ela não tinha mais nada, não deixou nada para a filha que havia criado. Morreu pobre”. Seus bens devem ter sido divididos entre os filhos de seu beneficiado. Ela faleceu por volta de 1984. 

3.5 Revisitando Martinha: últimos anos de vida 

As estratégias adotadas por Martinha para ascender e proteger os filhos remete-nos a algumas reflexões. Saturnino formou sua família, e, para mantê-la, trabalhou nas terras herdadas de sua mãe. Os filhos de Manoel Cedraz herdaram terras e meios de aumentar suas rendas. O casal teve a oportunidade de formar uma família numerosa, com filhos, netos e bisnetos. 

Nos últimos anos de vida juntos, Manoel Cedraz e Martinha viveram na Fazenda Urussú, próximos de alguns de seus filhos e netos. Segundo descendentes entrevistados, ela teria sido uma mulher que ajudou muito o marido. Trabalhava cuidando das fazendas e, possivelmente, também ajudou na ampliação do patrimônio da família.  

Seu esforço para reencontrar os irmãos mostra seu compromisso em proteger todos os parentes. E, provavelmente, por isso, tornou-se a mulher que muitos ouviam falar, principalmente, entre os iguais. Sua vida deve ter suscitado diferentes versões de histórias desde a época do cativeiro. 

A respeito do relacionamento com o proprietário que se tornou, posteriormente, marido, ela teria sido uma mulher que tinha algum domínio sobre ele, mesmo que fosse de forma discreta. Certamente, foi uma relação também marcada por conflitos e tensões, pois, toda relação entre homem e mulher está exposta a um jogo de forças e de poder. Mas, por outro lado, a mulher, considerada como dependente e submissa, dispõe de meios estratégicos na conquista de espaços e direitos. 

Ela tratava o esposo como Ioiô, da mesma forma que os escravos tratavam seus senhores. Desse jeito, ensinou seus filhos e netos a tratarem Mané Tenda. Mais do que continuidade do passado de escravidão, era o reconhecimento de uma autoridade. Podia ser parte do jogo paternalista que vinha do tempo do cativeiro, mas que era possível aos submissos refazer seus significados, distendê-los, na pretensão de domínio. Um jogo em que a aparente submissão abria espaços de poder e era isso o que realmente importava. Não a enxergamos como uma mulher submissa, a ponto de fechar os olhos e receber apenas o que seu marido desejava que tivesse, ela agia, trabalhava, tomava decisões e influenciava Mané Tenda. 

Manoel Cedraz faleceu aos 88 anos de idade, onde sempre viveu. Contam que ele começou a perder a memória e saía vagando pelas estradas próximas das suas terras. Como já tinha uma idade avançada, o corpo não respondia mais aos desejos da mente, de ter uma vida ativa para trabalhar em suas terras. Em decorrência de uma queda que lhe causou uma fratura, passou mais algum período de cama e morreu, provavelmente, em 1916.

Martinha apareceu no recenseamento de 1920 como proprietária da fazenda em que morava. Faleceu em 1933, com cerca de 84 anos de idade, de “marasmo senil”, doença que diz respeito a problemas nos tecidos, resultantes de distúrbios da velhice. Na declaração de óbito, registrou-se que “faleceu de marasmo senil, não tendo recebido os sacramentos da Santa Madre Igreja, Martinha Maria de Jesus e depois de encomendada foi sepultada no cemitério desta matriz”. 

As informações acima são insuficientes para afirmar que se tratava de nossa Martinha, mas, os relatos nos deram uma pista valiosa, ela teria falecido no mesmo ano que o Padre Marcolino, pouco menos de cinco meses antes. Encontramos apenas uma “Martinha Maria de 83 Jesus” no livro de óbitos da Igreja Matriz de Conceição do Coité no ano de 1933, o que nos leva a crer que se tratava de nossa personagem. 

Seus filhos prosseguiram suas vidas da maneira que escolheram ou mesmo que lhes foi possível, devido às condições em que vivam e à posição social que ocupavam, lembrando que eram homens e mulheres “de cor”, o que também deve ter influenciado em suas conquistas. Mas, tiveram o cuidado de transmitir uma memória familiar aos seus descendentes. Tal memória construiu imagens variadas dessa mulher. Uns a consideram como rainha, quase uma santa agraciada por Deus, que enviou para seu caminho um homem branco que mudou sua vida. Para outros, ela foi uma heroína, buscou a liberdade de seus irmãos e influenciou na alforria de muitos cativos que viviam no mesmo espaço que ela. Tornou-se um mito. 

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Essa terceira geração da família de Martinha ainda vive, em sua maioria, nas terras localizadas nas antigas propriedades rurais em que moravam os filhos de nossa personagem. Os netos de Antonio Frutuoso que foram entrevistados residem na região de Juazeirinho. Alguns deles, na área rural, em terras herdadas por seus pais. É importante ressaltar que existe um número considerável de parentes de nossa Martinha que já forma pequenas comunidades na região rural que pertencia à Fazenda Trancada.

A Fazenda Trancada está localizada no distrito de Juazeirinho e ainda conserva as mesmas características do período em que Belmiro Cedraz de Oliveira e sua família viveram lá. A casa é grande e dividida em 14 cômodos, incluindo quarto para empregada, uma desnatadeira, local reservado para a fabricação de queijo e manteiga. Entre os cômodos, alguns despertaram curiosidades, como o quarto do casal, que tem uma porta que dá acesso direto ao jardim da fazenda. Ao observar a casa, foi possível verificar alguns móveis, bastante conservados, utilizados pela família e perceber que a casa tinha energia eólica, gerada por cata-vento. Esse dado demonstra que Belmiro e sua família tinham boas condições financeiras e desfrutavam de conforto. A fazenda é extensa, e, além da casa, também contém um curral construído na época que Belmiro viveu naquelas terras. Ela é de propriedade de alguns herdeiros de Belmiro e não é habitada atualmente, apenas serve como local para guardar instrumentos de trabalho de familiares que cuidam da casa e das terras. 

Dentre os bisnetos de Antonio Frutuoso, encontramos o Sr. Manoel Carneiro da Silva, de 73 anos de idade. Ele é neto de Antonio Frutuoso e filho de Hercília Carneiro da Silva. É casado com uma prima de primeiro grau, D. Maria Rosenalva Carneiro da Silva, de 72 anos, filha de Cândido Carneiro da Silva. Vivem no distrito de Juazeirinho. 

Outros bisnetos de Martinha entrevistados foi o casal Evandio Santos Oliveira, de 78 anos, e sua esposa e prima, D. Maria Silva de Oliveira, de 78 anos. Seu Evandio é filho de Alberto de Oliveira e D. Maria é filha de Antonio (Tunilo). Este casal vive na área rural de Juazeirinho, próxima das terras da Fazenda Caiçara. Outro bisneto de Antonio Frutuoso entrevistado foi João Santana Cedraz, com 70 anos, filho de João Cedraz Carneiro.

Outro bisneto encontrado foi João Pedro de Souza Oliveira, de 66 anos, que também contribuiu, com suas lembranças, para a escrita deste trabalho.  

Alguns descendentes de Joviniano ainda moram em Conceição do Coité. Entre eles, estão Maria da Glória, de 83 anos, e o Padre Elias Cedraz, com 70 anos. Dona Maria, atualmente, mora no distrito de Juazeirinho; e o Padre Elias trabalha em outra cidade da Bahia, no município de Teofilândia. Todavia, ambos têm suas terras e residências em Coité.

Os descendentes de Belmiro já vivem em contextos diferentes, alguns moram em outras cidades da Bahia, mas encontramos Romão Cedraz de Oliveira, professor aposentado, morando na sede do município de Conceição do Coité. Ele nos disponibilizou valiosas informações e fotografias de seus avós, pais e irmãos.

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