Os versos citados acima contam partes da memória da escrava Martinha, recontada a partir de documentos, como sua escritura de compra e venda; certidão de casamento e ainda relatos de um descendente dela e morador de Conceição do Coité. Segundo Orlando Barreto, Martinha nasceu em 1849 e viveu numa fazenda de Coité próximo a Salgadália, até seus vinte anos de idade. Ainda no cativeiro, sob o domínio de João da Cunha, ela engravidou e teve um menino que recebeu o nome de Saturnino. Mas, com apenas dois meses de vida, seu filho foi arrancado de seus braços e vendido. No que diz respeito aos seus familiares, como seus irmãos, o memorialista afirma que foram separados ainda quando crianças através de negociações entre seu senhor e outros da região de Conceição do Coité (BARRETO, 2004).
Quando ela estava com 20 anos, um fazendeiro, chamado Manoel Sedraes foi até a casa do senhor dela e pediu um copo com água. A escrava foi buscar e, ao voltar, tomou um tombo e quebrou a “caneca” que trazia. Naquele momento, Manoel Sedraes “um rapaz muito educado”, amparou a moça nos braços e percebeu que ela tinha “traços belos” e assim se interessou pela cativa e iniciou uma árdua batalha para comprá-la. Como seu proprietário percebeu o grande interesse de Manoel Sedraes, aumentou opreço de 400$00 mil-réis para 800$00 mil-réis. Mesmo com a alta do preço, Manoel comprou Martinha e foram viver juntos. Em seguida, presenteou a amada com uma fazenda, onde ela trabalhou cultivando cereais; e com o dinheiro proveniente das vendas destes produtos, conseguiu comprar seus irmãos que eram escravos em fazendas da redondeza (BARRETO, 2004).
Orlando conta, que para agradar Martinha, seu companheiro fez uma busca e conseguiu comprar Saturnino, o filho de sua companheira, afastado dela ainda no cativeiro. Esta informação é evidenciada pelas escrituras de compra e venda datada em 1870, a saber, duas escrituras, a dela que só foi registrada tempos depois da compra e a do menino Saturnino. Todavia, a escritura do menino não faz referência ao nome da mãe. Orlando, por sua vez, aponta em seu trabalho a existência de um documento de partilha de bens do ano de 1912 no qual Saturnino aparece como “ Saturnino Cordeiro da Conceição, filho de Martinha Maria de Jesus” (BARRETO, 2004, p.34 ). As escrituras de compra e venda estão presentes no Centro de documentação da UNEB, e foram utilizadas nesta pesquisa.
Segundo Barreto, o casal enfrentou muito preconceito por parte da população de Conceição do Coité. Ele cita essa situação nos versos XLIII, que diz que seus melhores amigos e vizinhos lhe viraram as costas. O pai de Manoel lhe negou a benção, bem como seus irmãos que lhe desprezaram. Mas, mesmo com tantos transtornos, Martinha e Manoel Sedraes oficializaram a união em 23 de fevereiro de 1889, cerca de um ano apósa Lei Áurea, na Igreja Matriz de Conceição do Coité, casando-se, recebendo os sacramentos da Igreja e ainda tiveram cinco filhos.
Ao analisar o discurso de Orlando Barreto presente em seu livro Martinha:escrava, esposa e rainha, algumas questões tão caras à historiografia da escravidão ficam evidenciadas. Ele menciona os negros (escravos) como alguém sem personalidade, perspectiva e sonhos quando afirma que “O negro só balbucia; na terrível, escura e fria, maliciosa senzala”; E também, ao falar de Martinha, “ela, uma negra comum, igual a qualquer escrava, não tinha perspectiva; Sonhar também não ousava [...].” Ele ainda aponta em seus versos de cordel que os acontecimentos que envolveram Martinha foram obra de Deus, uma providência tomada por um ser supremo que, ao ver o sofrimento daquela mulatinha, fez com que um homem branco tivesse tamanho amor por ela (BARRETO, 2004, pg.12, 13).
Barreto também faz menção ao fim da escravidão e as suas “transformações” navida do casal e da sociedade de Conceição do Coité. Ele afirma que “no ano de oitenta e oito, quando a lei foi assinada, no dia treze de maio em Coité não tinha mais nada, que ligasse a escravidão; Todo mundo tinha noção, que ela estava acabada.” Em outrosversos ele fala do alívio que Martinha sentiu com o fim da escravidão, pois mesmo já sendo “senhora”, sentia-se mais livre e seus sonhos em família seriam realizados, ou seja, “todas as coisas haviam mudado” (BARRETO, 2004, p. 28).
É importante levar em consideração que Orlando Barreto é um memorialista e não teve a preocupação de problematizar as informações encontradas em suas fontes; ele apenas relatou a memória e suas conclusões compartilham com a historiografia tradicional que tratava o escravo como passivo, vítima de um sistema opressor e incapaz de tomar os rumos de sua própria vida. Barreto ainda aponta uma ilusão sobre o fim da escravidão que possibilitaria melhores condições de vida para os negros.
Estudos recentes mostram que a abolição da escravidão em 1888 não conseguiu transformações significativas para a vida dos ex-escravos, pelo contrário, foram tempos difíceis em que a sociedade branca fazia questão de demarcar seus espaços privilegiados e afastar os negros, pois tal presença causava vergonha para os antigos senhores, e quando os mantinha por perto era para, no mínimo, receber “gratidão”, obediência e respeito por parte de suas antigas propriedades.
Segundo Nilzete Silva, muito desta história foi recontada por descendentes do casal que moram em Conceição do Coité e até pode ser fruto da imaginação dosparentes do casal e do próprio Orlando (SILVA, 2011). Mas, o que nos interessa neste momento é o fato de que a memória da escrava Martinha mostra a presença da formaçãode famílias a partir de escravos em Conceição do Coité. Também aponta especificidades, como o casamento entre um livre com uma cativa e ainda a luta dela para reunir sua família ao comprar seu filho e seus irmãos.
Fonte: Vestígios no tempo: escravidão e liberdade em Conceição do Coité-BA (1869-1888) - Edimária Lima Oliveira Souza
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